quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Quadrilha do Inferno



Essa história se passa no inverno, mas não um inverno que a gente pensa naturalmente, ou melhor, o inverno que nos vendem. Aqui não tem neve, boneco de neve, nem ação de graças e nem natal. O inverno daqui é de 15°C, o suficiente para a gente tirar todos os casacos, botas, gorros e luvas dos armários. Estamos no Rio de Janeiro, a minha cidade. Não julguem o nosso inverno!
Eu sou a Luísa e ao me descrever vocês diriam que eu sou a patricinha da turma. Eu só me considero normal, ligada em moda, maquiagem, música, livros (algumas vezes), redes sociais. Sou uma adolescente normal acima de tudo. Mas, para tudo a gente acaba recebendo rótulo, principalmente na escola e no ensino médio, que é patricinha fútil. Tá, o fútil é exagero! Estou no auge dos meus 15 anos, recém-completados no final do último ano e estou no primeiro ano do ensino médio.
Confesso que foi uma experiência diferente do que o segmento anterior, mesmo me mantendo na mesma escola. As aulas já se mostraram diferentes e bem, saíram alunos antigos e entraram novos no colégio, o que muda e muito a dinâmica da turma. Todos da turma até se conversam, mas afinidades são bem poucas. E surgiu o chamamos carinhosamente de: Turma Rebelde do Fundão da sala. É um grupo de garotos que apenas atrapalham todas as aulas com suas brincadeiras não lá muito legais algumas vezes.
Eu passo meus dias na escola na companhia das minhas duas melhores amigas: Jolynn e Marina. Estudamos juntas desde sempre, pelo menos de onde eu me lembro. Jolynn é nossa gótica suave, adora rock e roupas mais escuras. Ela escreve algumas coisas bem legais e publica na internet, mas ninguém sabe que é ela. Marina é a nerd do grupo. Ela nos ajuda a estudar para as matérias. Ela adora ler, especialmente os seus quadrinhos e mangás.
E chegando próximo ao meio do ano, além das férias, nessa escola tem mais uma coisa que é tradição: Festa Julina. Evento onde todas as turmas são chamadas para apresentar uma atividade de dança, que vale a nota do bimestre em Educação Física. Então, todo mundo acaba participando porque não quer ficar com uma nota baixa manchando o boletim.
Fomos informados pelo diretor que a tal época se aproximava novamente e devíamos decidir o que apresentaríamos, o que seria feito numa reunião logo após o término das aulas do dia. Foi feita uma votação e aconteceu o que eu e minhas amigas suponhamos: Quadrilha. Eu preferia uma dança mais moderna, mais divertida, mas democracia é democracia. Logo os superiores souberam de nossa decisão.
Na sexta-feira seguinte, a tarde, nos reunimos novamente, dessa vez no pátio para o primeiro ensaio. Mas, primeiro, devíamos decidir quais seriam os casais.
- Quer apostar que todo mundo vai querer ser o par do Vitor? – comentou Marina
Ele é o crush de 90% das meninas da nossa classe. Ele é bonitinho, simpático e claro, joga futebol muito bem. Eu tive uma queda por ele no início do ano, mas não passou disso. Mesmo eu sendo tecnicamente popular, ele nunca trocou nada além de bom dia comigo.
E minha amiga estava mais que certa. Outra medida teve que ser tomada para que fosse justo. Afinal, pares para dança precisavam ser formados o mais rápido possível. Nosso representante de turma tomou a frente e disse:
- Meninas, não podem ficar todos como par do Vitinho, assim não conseguimos formar uma quadrilha. O que acham de fazermos um sorteio e tirar as duplas na sorte? Quem concorda levante a mão.
Aquilo tinha muito potencial para dar muito bem ou muito errado, mas foi a única e melhor ideia que surgiu, então eu, minhas amigas e mais um monte de gente levantou a mão e tínhamos um sorteio para realizar agora. Cada um escreveu seu nome num papel e os nomes foram separados em meninos e meninas. Somos uma turma mista o suficiente para que nenhum par fosse de duas garotas ou de dois garotos, o que há meu ver não tem problema algum.
E começou a retirada dos papéis dos casais. Eu me senti muito em Jogos Vorazes, onde um menino e uma menina são escolhidos como tributos, ou melhor, para uma sessão de tortura de cinco minutos na frente da escola toda e dos seus familiares também. Não há humilhação pior para um adolescente de classe média alta.
Minhas amigas foram logo tiradas. Jolynn teve a sorte (ou seria inveja) de ficar com o Vitor. Já Marina ficou com o Antônio, que é dá turma dos inteligentes da sala. Sorte a dela, ela tá a fim dele tem um tempinho, pode ser uma boa chance para ela finalmente dar uma investida nele.
E eu, bem, logo chegou a minha vez e vi que aquela dança de festa julina poderia ser a pior da minha vida, com direito a esse drama mesmo, eu posso. Me deixa! Quem ficou como meu par é Otávio, que é da turma do fundão. Eu não me dou muito bem com eles, sendo sincera. Eles já fizeram comentários sobre mim dos quais não gostei e acabei tomando ranço mesmo.
Ele se aproximou de mim logo em seguida, enquanto os outros nomes ainda eram tirados. Sorriu, meio sem graça, por conta de todo o histórico e só falou:
- Olá, Luísa! Olha, eu sei que não queria que fosse meu par. Na verdade, acho essa história de dança toda um saco, só estou fazendo pela minha nota mesmo.
- Pelo menos nisso a gente concorda! – cruzei os braços
- Quero também pedir desculpas pelo que meus amigos falaram de você. Tem horas que eles são uns babacas!
- Tem horas? – ironizei
- Tá bom, eles sempre são. Admito que pensava igual antes, mas agora sei que não se pode dizer isso de uma garota.
- E com quem aprendeu isso?
- Com a minha irmã mais velha. Quando comentei da história com ela, só faltou ela puxar a minha orelha. – riu – Ela é toda engajada nessas coisas, acho legal!
E não falamos mais nada. Depois a turma se reuniu novamente para decidirmos o que faríamos além de uma simples quadrilha, porque nos chegou a informação de que também seria um concurso e a melhor turma seria premiada com ainda não sabemos o quê. Mas, só de haver a palavra competição e prêmio, muitas pessoas da sala levariam aquela apresentação muito a sério.  O que não era o caso de mim e nem do meu par. Olhei para ele neste momento e percebi indiferença no seu olhar, assim como ele percebeu no meu. Havia uma sintonia estranha entre nós!
Em seguida, a classe se sentou em roda no pátio e ficamos discutindo ideias de incrementar nossa dança. Sugeriram acrescentar música moderna, misturar com outros tipos de dança como xaxado. E veio uma ideia maluca, de uma garota – aluna nova que não lembro o nome - que disse ter, há pouco tempo, começado dança de salão e que seria bem divertido a gente colocar alguns estilos misturados a partes da quadrilha. Era uma ideia legal mesmo, tanto que a maioria concordou com ela, inclusive eu. Porém, isso acarretava que devíamos pagar por aulas particulares ou por coreógrafo para colocar tudo junto. A mesma menina disse que falaria com a professora e que por serem aulas comunitárias, ela podia até cobrar um preço mais em conta. Sendo assim, a reunião terminou e todos se dispersaram. Eu fui com minhas amigas para a minha casa, já que íamos fazer outro trabalho naquele mesmo dia.
***
No dia seguinte, a garota trouxe a resposta de sua professora e poderia nos dar as aulas. Ela cobrou sim, mas um valor até bom, levando em conta que ia ser pago por 40 pessoas. E havia outro problema, o ensaio seria alguns dias da semana e no sábado. Média de três a quatro por semana. Pelo que parece isso foi ordem dos mais interessados no bendito prêmio. Ou seja, lá se vão às tardes e os finais de semana livres até essa festa. Antes isso valesse só uma nota besta mesmo!
O primeiro ensaio era já no outro dia, lá na escola mesmo.  Todos levamos roupas leves para usar na hora do ensaio. Primeiro, a professora se apresentou.
- Boa tarde, pessoal. Eu sou a Joana e vou ajudar vocês com a parte de dança de salão e de coreografar a dança de vocês. Então, quais ideias vocês tem exatamente para isto?
- Bom, queremos ao menos usar três estilos diferentes durante a quadrilha. Nada que ultrapasse cinco ou seis minutos.
- Entendi. E quem aqui sabe alguma dança de salão? – poucos levantaram as mãos, meu par foi uma destas – Bem, temos que começar pelo básico então. Em casais, por favor!
Nesse momento ainda estávamos juntos em nossos grupinhos e após uma breve dispersão, todos estavam com seus pares respectivos. Otávio me cumprimentou, já a gente mal se olhava na sala de aula, ele perguntou, por educação, se estava tudo bem.
- Não sabia que já havia feito dança de salão. – comentei
- Minha mãe é dançarina e bem, agora que fiquei mais alto e a coluna do meu pai já não aguenta, ela treina comigo. Então, eu sei um bocado.
- Que legal! – sorri, era uma coisa interessante e inesperada sobre um garoto do fundão
Eis que a professora começou a falar:
- Bem, o ideal e o que sugiro é que façam a valsa, mais simples e vocês vão elevando o nível, com uma salsa e um tango para fechar. – ninguém teve qualquer objeção, ela prosseguiu – Então, casais, pose inicial. Uma das mãos unidas e meninas a outra mão de vocês vai no ombro de seu par e a dos meninos vai na cintura. E por favor, sem gracinhas. – todos riram – O básico da valsa. Ela simulou a pose no meio da roda que fizeram e fez – Um, dois, três. Um, dois, três. E vão girando. Meninos guiando!
- Isso parece complicado. – olhei o tutorial confusa – Como se faz isso?
- Não é tão complicado. Bom, eu vou te guiar na dança, com o todo o respeito. – e riu – A dança de salão é um pouco machista.
- Tudo bem, é só uma dança.
- Siga meus pés. Pode olhar para baixo se quiser, prometo não pisar no seu pé.
Fiz conforme ele disse. E fizemos perfeitamente algumas vezes, devagar, até que eu me embananei e pisei em seu pé.
- Desculpa! – soltei enquanto ele reclamava
- Faz parte! – voltamos a posição inicial – Comigo: Um,  dois, três. Um, dois, três. Isso! De novo.
Dava para perceber que não era só eu e Otávio que tínhamos dificuldades - ou melhor, eu tinha dificuldades – em executar passos tão simples. Já ouvira reclamações de pisão de pé, gente errando a direção dos passos. A professora passava nos olhando e vendo se estávamos indo bem. Quando ela se aproximou de mim e do meu par, Otávio fez algo que até me assustou, ele me fez dar um rodopio.
- Muito bem! Bom ver que já pegaram o jeito e estão até explorando outros passos. – riu – Parece que você tem um excelente condutor.
Quando ela se afastou, eu resmunguei:
- Por que fez isto? Quase me mata de susto.
- Quis fazer uma graça. Vai dizer que não foi legal?
- Foi! Só não faça mais isso.
- Não posso prometer. – e eu rodopiou de novo, me segurando pela cintura por fim, me provocando
Aquilo já chamara a atenção dos colegas de classe. Que viam a facilidade com que a gente conseguiu. E bem, pelos planos clichês de festa julina e que já tinha rolado esse papo durante a aula de hoje, era que precisávamos de um noivo e uma noiva. E por que não os que dançavam melhor?
Otávio ainda ousou me ensinar alguns outros passos, nem tão elaborados na visão dele, mas bem difíceis para mim, confesso.  A professora gostou bastante disso também!
Ficamos uns vinte minutos da valsa e depois, ela ensinou a salsa, que era até mais animado e com o passo básico para frente e para trás, diferente da valsa. O pessoal se animou com isso este acho que todos pegaram mais rápido, inclusive eu.
E claro que meu par resolveu dar de engraçadinho sem me avisar de novo. Ousou em alguns passos e que brilharam os olhos da turma tudo de novo.
E a mesma coisa aconteceu quando treinamos o tango. Mas, dessa vez, ele foi um pouco demais.
- Posso fazer uma coisa?
- O que? Vai fazer graça de novo, garoto?
- Vou. Mas você confia em mim?
- Eu tenho escolha?
Ele riu e falou na sequência:
- Relaxe as pernas!
E algo surreal aconteceu. No segundo seguinte, ele me jogou para cima, dando toques nas minhas pernas e eu meio que flutuei até pousar no chão. Eu não tenho medo de altura nem nada do tipo, mas o choque foi ser de repente. Pronto! Era o que eu mais precisava para virar a noiva da quadrilha. Que desgraça!
Todos aplaudiram, inclusive a professora Joana. E claro, o que eu temia aconteceu:
- Já temos nosso casal de noivos da quadrilha. – expressou o representante
- E o que iremos fazer afinal? – Eu indaguei
- Isso que vocês fizeram. – respondeu a menina que indicou a professora – Nem eu com meses de aulas fiz uma coisa assim.
O ensaio com a parte da quadrilha, onde estruturamos toda a coreografia junto com a professora. A quadrilha ocupará a maior parte da dança, sendo alternada com as de salão, com uns 40 segundos casa, prosseguindo com a quadrilha. Sorte de quem vai ter que mixar isso tudo!  E outra coisa foi decidida, com o destaque no ensaio, eu e Otávio seríamos o casal principal nas partes de salão. Os outros ficarão em volta, em uma roda, enquanto eu e ele fazemos a parte mais elaborada. A professora disse que pode nos ajudar nisso.
- Como vou aprender três estilos de dança em um mês? - retruquei
- Olha o que você fez um dia, menina. Imagine um mês.
- Podemos ensaiar nos outros dias juntos, se quiser. – falou Otávio
Assenti, entre ombros. E lá se vão às tardes livres que tinha. Eu tô muito fodida!
A professora nos passou a coreografia e bom, podíamos ensaiar porque o Otávio sabia tudo.  Ele disse que poderíamos ensaiar na academia de dança da mãe dele, que ficava perto da escola. Começaríamos já no dia seguinte!
***
Minhas amigas me perguntaram durante a aula do outro dia:
- Então, amiga, que louco você ter ficado como a noiva. – disse Jolynn
- Louco não? Meu par que ficou fazendo aqueles passos comigo.
- E foi bem legal. – comentou Marina – Muito da dança de salão é sobre o condutor, ele quem manda na dança. Já o conduzido fica com as partes mais divertidas. O problema é seu parceiro ser do Fundão da sala.
- Ele deve ser bem chato né amiga? – Jolynn indagou
- Até que não! Ele é só um pouco rebelde. – ri – Mas você sabia que a mãe dele é dançarina? Por isso que ele sabe tudo isso de dança. O que foi inesperado.
- Mais um motivo para vocês dois serem o noivo e a noiva. – Maria gargalhou – Vai ser engraçado no dia da festa.
- Nem me faça pensar nisso. Jogou a responsabilidade de ganharmos toda nas nossas costas. Tô meio aflita com isso, porque bem, eu não sei dançar isso.
- Sabe sim! Você viu o que fez ontem, só treinar mais e vai aperfeiçoar. Tem uma espécie de dom nato em você.
Depois nós trocamos de assunto. Encontrei-me com Otávio no final da aula, em frente ao portão da escola. Numa situação normal, isto seria visto de maneira estranha pelo outros, mas em virtude da Festa Julina, aquilo era normal e aceitável. Tem horas que o mundo é bizarro!
- Olá, Luísa. – sorriu a me ver – Podemos ir para o ensaio?
Assenti e seguimos para o estúdio da mãe dele, que ficava uns dez minutos dali. O local parecia vazio e confesso que fiquei apreensiva de ficar sozinha com ele naquele lugar. A gente menina sempre tem esses medos. Inconscientemente! Por graça do destino, tinha uma mulher lá nos esperando, era a mãe de Otávio, segundo a forma como ele a cumprimentou.
- Olá, filho. – ela respondeu – E você deve ser a Luísa. Prazer, eu sou a Luciana. – estendeu a mão e eu estendi a minha – Bem, vou ficar por aqui, o estúdio está livre agora, mas daqui duas horas tenho uma aula. Não podem passar desse horário, entenderam?
Assentimos e entramos na enorme sala de piso de madeira escura com um espelho que cobria uma parede inteira. Achei o lugar bem legal!
Eu e Otávio usamos os vestiários para nos trocarmos e voltamos.
- Pronta?
- Claro!
Demos as mãos e ele segurou minha cintura e eu pus a mão em seu ombro.
- Vamos começar pela valsa ok? Lembra: 1, 2, 3. – falou isso marcando os passos bem firmes no chão, fizemos algumas vezes e ele me fez rodopiar, depois continuamos no passo marcado e rodando pela sala – A professora não botou nada muito complexo para fazermos. Uns giros, umas passadas, coisa bem inicial nas três danças. Talvez por sua falta de experiência!
- Falta? Quer dizer zero né? – e me recordei de uma coisa do dia anterior – E como fez aquilo ontem comigo? O passo que me praticamente me arremessou?
- É um passo mais complexo e que eu sempre fui doido para fazer, mas até a minha mãe tem um pouco de medo dele. Dança de salão é uma coisa minuciosa e bem detalhada.
- A começar pelos passos base. – ri – Enfim, acho que ficaria legal fazermos ele. – completei
- Só se você quiser.
- Apesar do susto, eu achei divertido.
Estávamos conversando olhando um para o outro e já tínhamos encaixado o ritmo da valsa. Otávio percebeu isso.
- Não sei que mágica é essa, mas olha, já conseguimos dançar sem você olhar para baixo. Comparado a ontem, temos um progresso.
- Talvez você seja um bom professor.
- Ou você seja uma boa aluna. – e sorriu
E assim, todas as tardes se tornaram as de ensaio, fosse com toda a turma ou fosse com Otávio. E conforme os dias passavam, a temperatura também caia e já se fazia necessário sair de casaco em alguns dias.
***
Faltavam poucas semanas para a festa! Tudo estava uma correria, era ajeitar os passos, os tempos das músicas, ver as roupas para usar na dança e também chegou o período de provas junto com os ensaios finais. Otávio e eu já tínhamos uma química na dança que acho que a turma inteira notava. E claro que minhas amigas comentaram comigo sobre:
- Então, Luísa, você e o Otávio estão ficando? – indagou Marina
- Claro que não! Cê tá louca? – respondi logo
- A gente já percebeu o jeito que vocês se olham.  – completou Jolynn
- É coisa da dança, meninas.
- Você acha que nos engana? – em uníssono
- Estou falando sério! – cruzei os braços – Não tem nada rolando entre a gente.
- Tá bom. A gente acredita! – se deram por vencidas
E eu tinha percebido uma outra coisa nesse meio tempo. O quanto o Vitor olhava para nós três ali conversando na sala. Ele e Jolynn, mesmo sendo um dos pares, não se davam lá muito bem. Talvez ele estivesse olhando com raiva, mas ele olhava para mim, com aquele olhar devorador que alguns garotos lançam. E na boa, isso me incomodou! Sentia-me invadida com um simples olhar. Fingi que nem era comigo!
Mais tarde, quando a aula terminou, eu e Otávio nos encontramos no portão da escola para mais um ensaio no estúdio de sua mãe. Quem diria que cerca de um mês atrás todos me veriam sair da escola com o garoto do fundão, que apenas zoava em 90% das aulas. Otávio não era nada do que aparentava ser. Ele era bagunceiro sim, era zoeiro sim. Mas, ele era do fundão só por gosto mesmo! Ele não é burro, ele estuda e tira boas notas.
Naquele dia fazia um pouco mais de frio e eu esqueci meu casaco em casa, até vim com uma blusa mais grossa, mas não adiantou muito. Assim que pus o pé fora dos muros da escola, comecei a me debater. Otávio imediatamente me ofereceu o seu casaco, que obviamente virou um saco de batata em mim.
- Obrigada!
- Não é nada!
E ele me jogou seu olhar, aliás, eu já estava acostumada com aquilo nesse pouco tempo de convivência com ele, era o jeito dele falar qualquer coisa, sendo educado. Só que o que minhas amigas comentaram comigo mais cedo estava ainda reverberando na minha cabeça e vi umas notas de algo mais nesse olhar. E admito, eu fiquei prestando atenção nisso durante todo nosso ensaio naquela tarde e isso estava me desconcentrando. Eu estava errando mais que o normal.
- O que há com você hoje? – ele perguntou se afastando um pouco – Você nunca errou esses passos.
- Talvez seja ansiedade. – dei uma desculpa esfarrapada
- Ansiedade pelo quê?
- Todas essas nossas provas. É muito matéria para estudarmos.
- Isso é verdade! – ele compreendeu – Só que eu acho que não é isso. – disse me olhando nos olhos – Você está me olhando demais hoje. Tem algo acontecendo que eu possa saber?
Ele tinha esse quê de sincerão e jogar na lata logo, foi assim no primeiro dia.
- Pode falar. Você tá a fim de mim? – soltou
E eu fiquei muda, olhando para ele sem expressar reação. Eu não podia! Minhas amigas me abriram para um pensamento que nem tinha cogitado até então.
- Talvez. – falei, por fim
- Podemos tirar isso à prova. – disse me olhando, maliciosamente – Que tal?
Assenti, me cagando de medo. O aconteceu em seguida, bem, era esperado, mas não da maneira que foi. Esperava que Otávio fosse me puxar pela cintura e de uma vez entrelaçar nossos lábios num beijo, de um jeito selvagem. Não sei adjetivo melhor! Mas não! Ele sorriu, gentilmente pegou na minha mão e a beijou, sem tirar os olhos de mim. Pôs a mão livre em minha cintura, o puxando para perto de mim e só então, ele me beijou. Parecia mais uma das nossas danças e eu me senti bem assim!
Um pequeno estalo separou-nos quando a mãe de Otávio apareceu na porta da sala.
- O que estão fazendo ai? – sua voz ecoou na sala vazia – Achei que estavam ensaiando.
- E estamos. – ele respondeu – Demos uma pausa.
- Para namorar? – riu
Eu não sei de qual cor eu estava, mas eu só queria era me esconder embaixo da terra igual avestruz. Ser flagrada pela mãe independente de qual seja é extremamente constrangedor. Eu só queria era sair correndo dali o mais rápido possível. A mãe dele disse enfim:
- Só vim avisar-lhes do horário. Falta meia hora.
- Obrigado.
 E assim, ela saiu. Eu e Otávio ficamos nos olhando, naquele momento pós-beijo-interrompido-por-uma-mãe sem saber o que fazer.
- Otávio, eu preciso ir.
- Mas nosso horário ainda não acabou.
- Eu sei. Mas... – fiquei quieta
- Mas o quê? Pode falar: Não gostou do beijo né? Tudo bem, faz parte.
- Não é isso. – eu tinha gostado e não queria falar, era isso – Eu preciso mesmo ir.
- Tudo bem. – ele se deu por vencido – Eu te levo até lá na frente.
Só que eu tinha esquecido aquele friaca de 15°C que veio logo nesse dia. Preciso de blusas mais grossas para essa temperatura.
- Pode levar meu casaco. Tá frio para você voltar para casa assim. Minha parceira não pode ficar resfriada tão perto da festa.
- Obrigada! Eu te devolvo amanhã, quando vier devidamente agasalhada.
- Claro! Ah, desculpa pela minha mãe.
- Foi uma cena meio, sei lá, mas acho que ela vai entender.
- Sim. Bom, até amanhã.
Acho que ele percebeu que eu não queria tocar no assunto beijo e obviamente deixaria esse acontecimento como segredo, até das minhas amigas. Porque ninguém merece ter que reviver isso ao recontar.
***
E realmente o acontecido ficou intocado entre mim e o Otávio. Ensaiamos no dia seguinte com a turma como se não tivesse acontecido nada.  Alias, era o dia de mostrar as nossas partes para a professora e para o resto da turma.
As três músicas dos três estilos foram encaixadas em sequência e assim fizemos as coreografias de uma só vez. Eu sinceramente apaguei a minha mente, só me deixei levar pelos passos, pelas músicas, pelas mãos de meu condutor. E eu praticamente flutuei ali!
No final, foram aplausos e o maior alvoroço!
- Isso! Esse prêmio é nosso! – gritou Vitor
- Arrasou, amiga. – Jolynn e Marina disseram
- Ótimo! Maravilhoso! Vocês estão impecáveis, vão arrebentar no dia da festa. Continuem apenas ensaiando para não perder o ritmo.
***
O resto do tempo passou depressa. Vieram às provas do bimestre e para nos curar da ressaca das provas, a festa seria no dia seguinte. Fui fazer a última prova da minha roupa de noiva junto com o resto da turma, até porque mandamos fazer tudo no mesmo lugar. Eu só fiquei imaginando o quanto de frio iria passar com meus ombros de fora. Incluindo nisso eu e as outras meninas. Os garotos estavam felizes com suas roupas com mangas.
Eis que chegou o sábado! O sábado da festa! Estávamos ansiosos e nervosos! E claro, a ironia do destino fez com que a temperatura caísse mais por conta da chuva que apareceu. Ou seja, era estar com frio e molhada.
Fiquei a maior parte do tempo com minhas amigas, comendo, conversando, rindo e tentando esquecer o que faria logo na frente da escola inteira. Todas nós estávamos nervosas, mas ainda acho que eu mais.
Logo a nossa turma se reuniu nos bastidores, pois se aproximava a nossa vez de nos apresentar. O pessoal trocou de roupa e ficamos no enorme camarim conversando e repassando uma última vez os passos. Afinal, um prêmio especial estava em jogo.  Foi lá que eu encontrei com Otávio, não tinha visto ele a festa toda.
- Nervosa, Luísa?
- Bastante admito!
- Normal. Eu também estou. Mas, estamos juntos nessa lembra?
- Sim. – sorri, sem graça
Uma coisa que martirizava naqueles últimos dias, era sim o beijo e que não tocamos mais nele. Ele estava ocupando a minha mente. E eu senti que, com o final da apresentação, talvez não conseguisse falar com Otávio sobre o que eu realmente achei do beijo. Eu sentia que minha chance ia escapar e se perder. E talvez eu passasse o resto do ano com uma paixonite besta no garoto do fundão da sala. Eu tinha que falar, eu precisava falar.
- Otávio, eu posso te falar uma coisa.
- Atenção, alunos da 1B, está na hora de vocês. – nos chamaram
- Pode ser depois da dança? – me estendeu a mão
- Claro. – segurei, não querendo soltar
Eis que fomos para o palco, ou melhor, a quadra e ficamos em nossas posições.
A música começou a tocar e todos começaram a quadrilha, bem tradicional mesmo. Seguindo nossa ideia, eu e Otávio fizemos as três danças e salão, como uma grande dança dos noivos, enquanto os colegas, em roda, apenas batiam palmas enquanto dançávamos. Quem assistia a apresentação vibrava com cada passo mais elaborado que fazíamos. Fizemos uma valsa alegre, uma salsa divertida e um tango apaixonante. E terminamos!
Aplausos! Gritos! Tudo isso misturado. Uma euforia. Coração acelerado. Eu e Otávio sorrindo um para o outro. Não precisamos falar, sabíamos que tínhamos ido muito bem.
A turma voltou ao camarim animada e vibrando muito, mas eu, eu não estava feliz. Todos se dispersaram logo depois e em poucos minutos, de volta com minhas amigas, eu percebi que minha vida escolar voltaria ao normal logo.
Jolynn e Marina – junto com Antônio - conversavam alegremente. Todos nós, sentados na área externa para se recuperar do calor da dança com o vento mais gelado de fora. Eu olhava melancólica para a quadra, onde outra turma se apresentava. Queria parar naquele momento e vivê-lo para sempre se possível. Logo anunciariam o resultado do Concurso de Dança da festa e ninguém fazia ideia do prêmio ainda.
Tão distraída e eu nem notei que minhas amigas tinha simplesmente saído de lá e eu fiquei sozinha. Aproveitei um pouco essa solidão, eu estava necessitada.  Até que, de repente, começou a cair uma chuva fina, típica desta época e que marcava pequenas presenças desde a manhã. Não queria dar o mole de pegar um resfriado, então decidi retornar a parte coberta. No caminho, esbarrei com alguém. Um alguém que estava nos meus pensamentos minutos antes. Acabei caindo no chão, de tão grande que foi o impacto.
- Você está bem? – Otávio indagou, me estendendo a mão
- Sim. – levantei-me com sua ajuda
- Que bom.
Ele ia seguir seu caminho, mas eu o chamei.
- Posso falar aquilo que queria com você?
- Claro. E o que é?
- Eu gostei do beijo naquele dia. Só não consegui falar.
- Quer dizer que você tá a fim de mim?
- Não. Acho que gosto de você.
- Isso é muito melhor de ouvir.
Se aproximando, ele me beijou daquele jeito de novo.
Pensei que a quadrilha fosse ser a pior coisa desse ano, mas acabou sendo a melhor. Pensei ser o inferno, mas acabei no céu no final das contas. Mesmo com o frio, eu não importei de ficar o resto da festa com o Otávio, afinal, ele me emprestou o casado de novo.
Ah, e quanto ao prêmio? Bem, a minha turma ganhou e veja só, era uma viagem, talvez no final do ano.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

My name's WOMEN



Veja os tempos, - tudo que nos rodeia --
Eles têm mudado tanto, - mas mesmo assim --
Porque é que as pessoas continuam a dizer que "Lágrimas são as armas das mulheres" ?


Nós não choramos facilmente

Nós não estamos sempre embelezadas
Nós não somos bonecas
Que estão só bem-vestidas


Nós temos nossos pontos fracos

Nós parecemos estar sorrindo, mas não estamos
Não existimos para sermos úteis para vocês
Não se esqueça


(My Name's WOMEN - Ayumi Hamasaki)


***
Cresci dentro de um lar machista, onde apenas minha mãe e eu realizávamos as tarefas domésticas, enquanto meu pai e irmão ficavam fazendo qualquer outra coisa.
Na verdade, eu sempre reclamei e nunca entendi muito bem porque eu não podia ir brincar como meu irmão depois do almoço, eu tinha que lavar a louça e guardar. Aquilo vivia perturbando a minha cabeça. E em todo o resto da família era assim.
Já na adolescência, notava a diferença em como meus pais reagiam a um caso amoroso do meu irmão, parabenizando-o, e ao meu, eu era repreendida e diziam que eu não tinha idade para tal.
Comentava sobre isso com amigas, com parentes, fossem primas ou tias e acreditem, elas diziam: "Isso é coisa da sua cabeça. Não tem nada demais."; "É porque ele é homem!".
Esse último então que não me descia pela goela. Ser homem fazia dele algum ser especial? Super herói?
Só mais tarde que eu entender muita coisa que via e não entendia.
Por que as meninas do meu colégio sempre brigavam pelo garoto enquanto ele mesmo não estava nem ai para elas? Brigavam para ver quem tinha as melhores roupas, o melhor material escolar, o melhor penteado. Tudo era motivo para uma competição. Tudo mesmo!
E ai de quem fosse mais ou menos para a aula, ou fosse mais gorda que as outras, era certo de muitas ficarem comentando. Alias, era só ser diferente que era motivo suficiente.
Não compreendia isso também, perguntava as colegas de classe e só respondiam: "Ela é assim e quer que façamos o quê?"; "Se não se cuida, não arruma namorado".
Eu mesma nunca vi problema em alguém não gostar de arrumar, passar maquiagem, colocar uma roupa mais estilosa, ter um corpo diferente.
Questionava todos a minha volta e sempre me informavam que a vida era assim mesmo. Achei que fosse loucura da minha cabeça.
Continuei apenas seguindo a corrente... Mesmo que fazer e ver muitas destas coisas me irritassem e não me sentisse bem com isso. E não tinha com quem falar sobre isso.
Mas ai, passados uns anos, já na faculdade... Aconteceu o estopim!
Soube de uma colega de curso que fora estuprada dentro da faculdade. Isso porque o cara já a perseguia tinha semanas. Ela falou com todo mundo sobre e ninguém acreditou, apenas eu. E eu sempre fazia questão que saíssemos juntas quando possível.
E isto aconteceu no único dia em que não pude estar com ela.
A história se espalhou pela faculdade inteira. Comentários surgiram de todos os lados e dos piores possíveis. E ninguém acusava o cara e sim culpavam ela.
Quem mandou vir com aquela roupa para a faculdade? Tava pedindo.
Saindo aquela hora sozinha da faculdade ela queira o quê? Tava pedindo.
E sabe o que era pior? Ver essa menina entrar na faculdade e todos olharem para ela, com reprovação. Até as meninas.
Eu dava o máximo de apoio que conseguia. Fui com ela na reitoria para contar o caso, pois sei que ela não ia gostar de lembrar do que houve. Registramos queixa contra ele, sabíamos bem quem era.
Quem era só uma colega acabou virando amiga por conta dessa situação horrível.
Infelizmente, a pessoa nunca foi punida. Isto chateia nós duas. Até hoje!
Ainda lembro de ter comentado com as minhas avós sobre o assunto, numa reunião de família. Até esperei que elas fossem falar algo do gênero do que sempre ouvia, mas elas me surpreenderam ao achar boas as minhas atitudes e que devia fazer isso sempre. Nunca pensei que minhas avós fossem ser mais mente aberta do que o resto da família.
Contei as mesmas coisas aos outros e só recebi respostas de como era boba de estar ajudando ela. E que eu seria a próxima. Isso não é coisa que se diz a alguém.
E sabe o que eu fiz? Apresentei a amiga as minhas avós e formamos um quarteto que de vez em quando sai para passear, almoçar, fazer uns bordados até.
Hoje digo com orgulho que sou feminista, amiga de outras mulheres, sejam elas quem forem.
Assim como todas as outras mulheres que já passaram pelo mundo e que com seu pouco ajudaram tantas a ter muito. Mulheres que foram impedidas antes de fazer muitas coisas, minhas avós, por exemplo, e viram que não tinha nada de justo em algumas de suas limitações e pediram por seus direitos, por uma igualdade. Com muita luta, elas foram conquistadas. Muita coisa já mudou, mas ainda há um longo caminho a trilhar. Um passo de cada vez chegaremos lá, com certeza. Juntas, somos mais fortes, com certeza. Apoiando-nos umas nas outras somos mais fortes. Sororidade, palavra que aprendi tem pouco tempo, nos faz mais fortes.
Somos mulheres!
***
No jardim iluminado pelo sol, nós demos as mãos,
Nós ficamos próximas e nos consolamos.
Dissemos que nunca nos apaixonaríamos novamente.


Uma ligação tão poderosa mudou-nos

E agora nós nos tornamos tão fortes.
Esse é nosso estilo de vida, todos os dias... o tempo todo.


(...)



Começando amanhã, novamente e com estilo,

Eu me tornarei uma mulher que todos irão notar.
Mesmo se nós duas estivermos separadas, Nossos corações sempre serão como um só.

(Rinbu Revolution - Masami Okui)

Mirror Magic



"Você consegue ser diferente?
Se olhando no espelho, todo dia
e sempre ver a mesma expressão cansada
Cansada da mesmice
Do mundo, das pessoas, das coisas
Tudo é tão vazio
que este vazio se reflete no seu espelho"

(Mirror Magic - Cammy, As Super Agentes)

Foi apenas mais um dia normal, voltei do trabalho e ia tomar um banho para finalmente assistir o season finale da minha série favorita.
Separei o meu pijama e me dirigi ao banheiro. Soltei os cabelos, olhando o meu reflexo no espelho. Os cabelos caíram sob meus ombros e vi minha cabeça sacudir no espelho, mas... Eu não tinha feito isso. Fechei os olhos com força, meio incrédula e ouvi um riso.
-Você não está maluca, querida. - tinha sido a "eu do espelho"
-Quê?
-Surpresa? Pois fique mesmo.
-Eu não estou surpresa, tô assustada mesmo. Meu reflexo falando comigo.
-E daí? A coisa mais normal do mundo. Quem nunca conversou com seu reflexo no espelho?
-Não com ele respondendo.
-Nitrato de prata é só para iludir vocês, existe mesmo um mundo dos reflexos, onde cada pessoa tem sua cópia dentro do nosso mundo. - outro riso
-E por que resolveu falar justo hoje? - no dia do meu season finale, pensei
-Tédio!
Ficou um silêncio e nos olhamos, foi muito constrangedor. Então, resolvi puxar assunto:
-Como é ai no mundo "através do espelho"?
-Normal. Igual o mundo fora do espelho. Só que estamos sempre correndo atrás de vocês, porque sabe-se lá aonde você vão a um banheiro com espelho e precisam de um reflexo.
-Eu não consigo imaginar como é.
-Sabe sim. Lembra quando correu atrás do seu ex? Aquele idiota completo! É tipo isso.
Fiquei sem resposta. Não precisava não é, meu reflexo?
-Só estou sendo realista. - ela continuou - Ele não te merecia. Ainda bem que largou ele.
-Já que falamos de ex... Você tem? Reflexos se relacionam?
-Somos pessoas como vocês. A gente só vive num outro plano, que é paralelo. E temos algumas janelas, que nada mais são que... - e desenhou no ar - espelhos.
-Interessante. - comentei - Então sua vida deve ser igual a minha, já que você é meu reflexo.
-Nem tanto assim. A começar que sua direita é minha esquerda e minha esquerda é sua direita. Tenho um trabalho legal, um bom peguete, que é um gato. Uma casa legal, parecida com a sua. Acho que minha vida é boa!
-Pelo menos parece que as coisas estão correndo bem para uma de nós duas pelo menos. As coisas no meu trabalho estão merda. Meu chefe resolveu dobrar as metas. Estamos correndo que nem loucos.
-Eu sei. Não se que esqueça que eu vejo sua vida todinha daqui.
-Desculpe.
-Não há razão para se desculpar. Você não sabe como é a vida de um reflexo.
-Mesmo assim, sinto-me esquisita de pensar que sabe muito sobre mim. Já tive altos papos contigo.
-Espelhos são bons para epifanias e nós, reflexos, adoramos estes momentos. São um dos mais interessantes para nós. - ela fez uma careta curiosa - Quer saber de mais uma coisa do mundo através do espelho?
-Sim. - sorri
-Chegue mais perto, porque isso é confidencial. - Fiz conforme ela disse e ela prosseguiu - Alguns espelhos são portais entre os mundos e nós, reflexos, podemos atravessar e fazer o que quiser com nossos "originais".
Os braços dela saíram do vidro e me agarraram, tentando me puxar para dentro do espelho. Forcei para trás e consegui me desvencilhar, mas trazendo-a junto. E só então percebi que ela estava me manipulando para fazer isto, além da outra surpresa: uma faca, que ela usou para tentar me ferir. Começamos uma luta naquele banheiro que era uma pequeno corredor e acabamos chegando até a sala nessas condições. Não entendia os reais motivos dela e não tive coragem de perguntar, porém a própria tratou de se explicar, demonstrando sua raiva.
-Não aguento mais apenas ficar te seguindo e só olhando do outro lado. Você não sabe o que está fazendo com a sua vida, você faz tudo errado. Eu quem devia ser a original e fazer coisas maravilhosas e não servir apenas como o seu outro lado. Quero uma vida dessa para mim e o único jeito é matando você!
E a luta continuou. Ela conseguiu me machucar algumas vezes e eu já percebia uma pequena perda de sangue dos cortes, mesmo que fossem só superficiais. Era um caso de vida ou morte, notei isto logo, só pelas ações e o modo desesperado da outra. Tinha que fazer alguma coisa e rápido. Minha vida estava em jogo!
Nos atracamos novamente e eu consegui empurrá-la para longe, afastando-a e derrubando-a por tempo suficiente para que pudesse correr a cozinha e me armar. Peguei uma faca e escondi um grafo atrás, nas costas, segurando com a outra, conforme o plano que pensei na hora.
-Estou armada agora também. - exibi a faca, provocando-a
-Ora sua... - ela esbravejou, vindo para cima
Retirei a mão escondida com o garfo e cravei no pescoço dela. Com a imensa dor repentina, ela berrou, largando sua uma forma de se defender. E eu fui certeira. Peguei a faca e cravei no peito dela. Só que, não houve sangue, apenas uma fumaça preta saiu, dos dois ferimentos que abri nela. Não falou mais nada, perdeu a cor, caindo no carpete da sala. Logo seu corpo de desfez, também numa fumaça preta, sem deixar vestígio algum, assim como a faca que munia.
Corri para o banheiro e parei diante do espelho, mas, como um vampiro, não havia reflexo algum. Foi só ai que caiu a ficha de que aquilo ocorrerá de verdade. Pensei ser um pesadelo, mas não.
Acho que nunca acreditamos quando algo surreal e repentino nos acontece. Demora a cair a ficha, aquilo tornar-se realmente real.
Decidi conferir outra coisa. Peguei o celular e abri a câmera frontal. E sim, consegui me ver. Bem, o celular seria o meu espelho a partir de agora. Ainda bem! Eu não quero mais contato com nenhum reflexo maluco e assassino.
E quanto ao season finale da série? Bem, acho que tive uma noite season finale demais. Então, decidi deixar para o dia seguinte, mesmo que corresse o risco de tomar spoiler.

O Chapéu



Há uma teoria que já ouvi e que acredito veemente ser verdade: Os objetos carregam energias de quem os usa, de onde ficar e dos momentos.
E eu tenho este poder, de ler as leituras destes objetos e caminhar por dentro de suas memórias, que ao ver dos de fora dura apenas um segundo. Para mim, parecem ser horas algumas vezes.
E quantas histórias não conheci através destas minhas viagens temporais energéticas objectuais? Tá acabei de inventar este termo para parecer bonito, mas em suma, se eu encostar em algum objeto "novo" eu posso acessar as memórias dele. Sim, como um HD imutável mesmo.
Quando mais nova, não tinha muito controle sobre meu poder. Imagine o quão perturbador não seria encostar em algo e ter um flash de várias passagens de anos e até épocas diferentes. Mas, com os anos, aprendi a controlar e as memórias só vem se eu quiser vê-las.
Por conta do meu poder, eu trabalho como arqueóloga e também faço uns freelancers analisando objetos de museus. Imagine quanto da história do mundo não vi só de pegar nestes objetos antigos.
Porém, meu poder é um segredo só meu. Acabo misturando meus conhecimentos científicos e meus poderes para construir histórias verossímeis para os objetos que encontra e analiso, porque ninguém acreditaria em mim se citasse detalhes tão ricos como os vejo nas minhas viagens.
***
Estava trabalhando num museu na minha cidade natal, quando meu telefone toca e recebo a notícia do falecimento de uma tia. Ela já estava doente havia um tempo, mas a gente sempre tem esperanças de que a pessoa vai conseguir se curar, porém isto não ocorreu.
O enterro seria no dia seguinte e informei no trabalho que precisaria sair um pouco mais cedo por conta disso. Não ocorreu nenhum problema quanto a isso.
Depois do sepultamento, fomos comer todos da família juntos, na casa desta tia.
Conversa vai, conversa vem, a gente acabou se distraindo e não viram que meu tio, marido da falecida, se recolheu para dentro. Ou só queriam deixá-lo sozinho, sabiam que ele precisava disso.
Mas, eu senti algo me puxando. Não sabia exatamente o quê e eu também queria ir ao banheiro.
No caminho de volta, passei pelo quarto e, pela porta aberta, vi meu tio mexendo em algumas roupas do armário, tirando-as. A curiosidade me fez entrar e perguntar:
-O que está fazendo, tio?
-Separando umas roupas dela, para doar. E, queria lembrar um pouco dela também.
Sorri, E fiquei aqui com ele, enquanto ele ia puxando as peças e citava algumas ocasiões em que ela foi usada. Uma sessão de nostalgia e histórias certamente.
Eis que o resto da família notou minha falta e foi a minha procura. Logo todos se juntaram e continuamos ouvindo as histórias daquelas roupas. Todo mundo tinha uma pequena amostra do meu poder, mas através das palavras do meu tio.
Podia ver que tinha algo brilhando, leve, dentro do armário. Eu sentia que algo emanava dali, junto com aquela luz. E estava me coçando de curiosidade para descobrir o que era, não é qualquer objeto que é assim não,
E parece que ele leu meus pensamentos. Abrindo um sorriso, ele pegou e era um chapéu de praia. Com uma cor bege, parecida com palha, com alguns tons de verde misturados com a outra e uma fita fazendo um laço em cima.
-Esse chapéu... - começo meu tio - Era o favorito dela! Sempre usava quando íamos a praia, outra coisa que ela adorava.
Tinha realmente algo especial naquele objeto. Era ele que estava me atraindo já lá de fora.
-Eu posso ver, tio?
-Claro! - respondeu e entregou-me
Coloquei-o, me olhando no espelho que tinha ali por perto e permiti que as memórias dele fossem até mim. E assim, começou mais uma das longas viagens que faço dentro dessas linhas temporais.
Visitei todas as memórias deste chapéu, maioria delas envolvia realmente sol, mar e calor. Porém, especialmente duas me chamaram com mais força. A primeira, quando o chapéu foi comprado; e a última, quando foi usado pela última vez por minha tia.
Era uma feira de uma cidade litorânea, provavelmente a área turística também. E lá estava o chapéu, pendurado em meio a tantos outros, em uma tenda, como tantas que haviam ali. *
Quando faço uma viagem, eu sou apenas mera observadora do que aconteceu. O objeto simplesmente me apresenta sua história.
E ao longe vi meus tios vindo. Conversando, rindo, observando descompromissadamente as barracas da feira. Não parece ser uma memória tão distante, dez anos no máximo. Eis que passam pelos chapéus e minha tia tem vontade de comprar um.
Ela conversa com a vendedora e vai experimentando chapéus dos mais variados tipos e cores, enquanto o que me trouxe até aqui continua no seu canto, pendurado.
Minha tia não parecia gostar muito do que a dona da tenda indicava e estava desanimando de levar alguma coisa. E meu tio percebia isso.
-Tem mais alguns trás da senhora. - falou a vendedora
Ela se virou e bateu o olho direto no chapéu bege e verde. Foi amor à primeira vista, acontece muito isto com objetos. Experimentou e só conseguiu sorrir.
-É este! - disse - Quanto é?
A vendedora respondeu, eles pagaram, agradecendo e minha tia saiu já usando o chapéu na cabeça.
Depois disso passei por longas memórias desta mesma viagem a praia deles e muitas outras.
E nesse meio tempo, ela acabou adoecendo e por conta do tratamento mal podia sair de casa. E foi ai que cheguei a última memória: da última vez em que ela foi à praia.
Eles foram de carro até um praia próxima, ela já estava bem debilitada por conta do tratamento.
Era uma praia com calçadão e vários quiosques pela orla. Uma areia clara, uma calçada em preto e branco, um céu ficando alaranjado. Acabou indo na cadeira de rodas e só pode ir a areia porque foi carregada. Foram ela, o marido e os dois filhos, meus primos a propósito. Estenderam um pano grande na areia e colocaram sentada, com apoio nas costas.
Eles assistiram ao pôr-do-sol e minha tia, em momento nenhum tirou aquele chapéu. Fizeram um piquenique.
Ficaram até pouco depois de escurecer, já que pelas conversas ela devia ir logo para o hospital. Esta memória é de algumas semanas atrás e infelizmente, minha tia não pode ver o mar de novo, como ela tinha dito que queria.
-Assim que sair do hospital virei aqui e tomarei um banho de mar. - e sorriu, do jeito mais lindo que só ela tinha
E acabou ali. Retornei a realidade. Para mim, pareceram algumas horas, mas para os outras em volta era apenas um segundo.
Não consegui e uma lágrima correu do meu rosto. Ninguém entendeu nada, só meu tio que falou, em seguida:
-Leva o chapéu de presente para você.
-Não precisa. - olhei para ele - Ele tem muitas histórias. Guarde e quando quiser lembrar dela é só pegá-lo.

Hachi



Dia 17 de Junho de 2017, aniversário de oito anos de namoro de um certo casal.
Resolveram comemorar este aniversário de uma maneira bem simples, já que nenhum dos dois estava com vontade de sair: jantar em casa. Eles trocaram presentes singelos e desfrutam da companhia um do outro. Na sequência do jantar, assistiram alguns episódios de uma série.
Quando ela foi pegar mais refrigerante na cozinha, encontrou uma carta sob a mesa. Ela encheu os copos e voltou com eles  e a carta.
— Nem sabia que tinha escrito uma carta também, amor. Não precisa.
— Não escrevi. - disse ele.
— Quem mandou então?
— Não sei.
— Acende a luz para a gente ler.
Ele fez conforme ela falou e foi aí que eles viram o remetente: Tempo.
— Isso é alguma brincadeira? - ele reclamou.
— Só vamos saber se lermos.
Abriu o envelope, tirou a folha que havia dentro e começou a ler, em voz alta:


"Olá querido casal,

Como vai a comemoração de mais um aniversário de namoro? Espero que bem.
E sim, vocês leram certo. Sou eu, o Tempo quem lhes enviou está carta.
Sempre envio cartas aos casais que alcançam os oito anos juntos. Porque este número carrega um valor especial, que lembra muito de mim.
Um 8 deitado lembra o símbolo de infinito. E é isso o que eu sou: infinito. Não há começo ou fim para mim, apenas passagens, marcos, momentos e lembranças. Vejo sempre alegria, tristeza, amor, ódio. Vejo vidas indo e vindo, começando e terminando. Eu só passo, mas também observo tudo.
E sei que oito anos passaram para vocês. Longos, mas importantes anos. Ainda me lembro bem dos dois, alunos de ensino médio, com rolos e mais rolos que não vou ficar recordando porque aí somaríamos quase 10 anos. (Aliás, gravem aquele vídeo sobre esta história de vocês, porque como é chato ver que sempre contam para os amigos. Vídeo é praticidade.)
Enfim, acho que eu sou muito importante para qualquer relacionamento. Quanto mais há de mim, melhor. E oito anos não são qualquer coisa. São oito anos de convivência, de amizade, de companheirismo, de amor, de bom ou mal humor e de atuar sogra - para ambos.
Quantas coisas já não viveram juntos? Quantas histórias já não têm para contar? As risadas, as brigas (elas existem, admitam), os passeios, ou só as tardes entediantes de domingo, recheadas com pipoca, brigadeiro e algum filme.
O amor de vocês é infinito, igual a mim. Aproveitem todos os outros momentos juntos. Eles vão duram, com certeza.
Não me arrependo de nada que fiz com vocês, eu os transformei em quem são hoje. Eu faço isso, eu passo e transformo, desejando que sempre seja para melhor. O melhor remédio para muitas coisas é o tempo, seja para esquecer ou para fortalecer. Especialmente o amor!
Despeço-me aqui, lhes desejando o melhor e o maior amor do mundo. Vocês merecem!


Com carinho,

Tempo."



Após o final da leitura, o casal se sentiu feliz e entendeu o significado de tudo o que já passaram, fosse bom ou ruim. Foram estas coisas que os fizeram chegar onde estão e serem quem são hoje. Inclusive, a razão de estarem juntos.
Decidiram guardar aquela carta tão única e especial. Porque o tempo é algo precioso.
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