quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Recanto das Almas - 12 Meses com Minorin: Novembro

 

“O tempo que você me deu é muito precioso

Mesmo se eu tropeçar ou cair, não consigo me livrar dos meus sentimentos


eu rezei por força, eu rezei por força

Quando fecho meus olhos silenciosamente, a imagem do futuro vem à mente


Enquanto iluminava a escuridão escura, pensei na bondade das pessoas

Eu nunca vou esquecer como eu chorei no meu pequeno eu”


(Ittousei - Minori Chihara)


***


Os contadores do pós-vida trabalham a todo o vapor, todos os dias, incansavelmente. Os funcionários deste lugar ficam observando atentamente tudo, pois a função deles é bastante importante. Eles recebem as almas que deixam o planeta, elas passam um tempo ali e depois são remanejadas e retornam. Tudo isso é um ciclo, sempre bastante equilibrado… Na maior parte do tempo! De vez em quando acontecem uns pequenos desequilíbrios, sejam com acidentes, desastres naturais e até guerras… Essas coisas que fazem muitas almas voltarem de uma vez!

Porém, ninguém esperava o que estava para acontecer.


***


Todos os trabalhadores, ou melhor, os Mentores do além-vida estavam executando suas tarefas normalmente, como ocorre em todos os outros dias. Todos os colaboradores estavam muito concentrados em seus afazeres, seja cuidando das almas, explicando a elas sobre o que é aquele lugar, mexendo em arquivos… São tantas que não é possível listar e sempre surgem novas!

Eis que um alarme soou! Um som alto e estridente ecoou por todo o espaço, deixando assustadas as almas recém-chegadas e os Mentores que estavam em companhia deles.

- O que é isso? - perguntou uma alma

- Aconteceu alguma coisa na Terra.

Mesmo sendo em casos raros, aquele alarme é disparado quando uma grande quantidade de almas vai retornar àquele plano. Então, eles já sabiam quais eram os procedimentos a serem realizados. Pediram que todas as almas se alojassem em seus dormitórios temporários, pois eles tem um grande serviço a fazer.

Todos os Mentores se dirigiram aos enormes portões que dão entrada ao pós-vida, preparados para mais uma jornada intensiva de acolhimento de recém-chegados. Eles esperavam que essas pessoas estivessem talvez feridas, machucadas de alguma forma.

Então, a multidão começou a aparecer. Porém, não era nada o que eles esperavam! Não havia nada aparente em suas peles, então isso abriu outras possibilidades sobre qual era a causa daquilo.

Como de costume, as almas caminhavam lentamente e se encontravam bastante perdidas, olhando em volta e tentando entender o que se passava.

Os primeiros alcançaram a barreira de Mentores, os observando com olhos curiosos.

- Onde que nós estamos? - indagou um

- Seja bem-vindo ao Pós-vida. - tratou de responder um mentor

- Aqui onde todas as almas que deixam a Terra vem para se reconstruir e poder retornar. - completou outro

- Venham todos! - começou um terceiro - Venham todos ao nosso grande salão! Explicaremos tudo lá!

Assim, a grande quantidade de pessoas foi caminhando em direção ao local indicado, sentando-se no anfiteatro que era ali, onde já estavam posicionados alguns dos Mentores mais importantes e que tinham posições de liderança.

Levou alguns minutos até que todos os chegados se acomodarem. Ainda bastante perdidos com o que ocorrera e observando as cinco figuras que se destacavam no centro do local, aguardando para falar. Então, quando todos estavam organizados e atentos a ouvirem, a Grande Conselheira Amanda começou a falar:

- Olá, recém-chegados, nós, os líderes e conselheiros damos boas-vindas ao pós-vida. Não sei no que vocês acreditavam no planeta Terra, mas sim, quando alcançamos a morte, não significa o fim, apenas o encerramento de mais um ciclo de tantos outros que vocês irão viver na sua vida eterna.

Caretas confusas e um pequeno burburinho surgem no local, o que era uma situação bem comum e que o grupo estava acostumado.

- Peço silêncio e que se acalmem. - declarou outro conselheiro, Clarêncio - Sei que são muitas informações de uma vez só. Porém, todos irão passar um tempo aqui, para assimilar tudo e claro, posteriormente, iniciar outro ciclo.

- E para isso, contarão com a nossa ajuda e com a de nossos Mentores, que estarão presentes com vocês de forma mais próxima. - falou a Conselheira Sofia - Aqui é como uma escola de passagem, onde vocês vão aprender coisas novas e se preparar para o que vem pela frente.

- Sabemos que estão perdidos e confusos, o que é normal quando se retorna ao pós-vida. - falou o Conselheiro Eduardo - Mas, em resumo: vocês morreram. Não sabemos em que circunstâncias, já que vieram todos de uma vez, mas com o tempo saberemos.

E outros sons de cochicho começaram novamente, pelos menos motivos de antes. O quinto conselheiro, Antônio, que não dissera nada até então, pediu novamente silêncio e concluiu:

- Imagino que devam ter muitas perguntas e elas serão respondidas conforme a estadia de vocês aumentar. Peço que todos mantenham a calma, pois isso ajuda e muito no processo que vocês passarão. - ele respirou fundo - Agora, nós queremos saber de vocês: o que está acontecendo na Terra? O que aconteceu com vocês?

- Com os outros eu não sei, - soltou um lá do fundo - mas eu lembro de passar mal e estar no hospital. Em certo momento, os médicos me sedaram e quando despertei, estava vindo para cá.

- Eu lembro de ter visto nos noticiários uma nova doença, que está deixando as pessoas na Terra doentes e muitas estão indo para o hospital por conta da gravidade. Foi o que aconteceu comigo! - comentou outro num dos bancos mais à frente

E os relatos foram se repetindo, a maioria parecidos uns com os outros. Aquelas almas estavam em hospitais, recebendo tratamento para uma doença e não resistiram. O que havia em comum com as histórias além dos acontecimentos, eram a própria doença em si, que era a provável causa daquele retorno em massa.

Depois de conversarem um tempo com as almas recém-chegadas, os conselheiros dispensaram-nos e com auxílio dos Mentores, conseguiram alojar- se nos quartos disponíveis no pós-vida.

A Mentora Julie teve um dia bastante atribulado, como todos os colaboradores dali, mas ficou curiosa sobre o motivo daquele retorno repentino. Os Conselheiros ainda iam entrar em contato com os Contadores do pós-vida, para saber em números o ocorrido, porém eles levariam uns dias para apurar isso, depois chamando os Mentores e outros trabalhadores para uma reunião. E esta seria só mais uma tarefa em meio a bagunça e super agitação que já começaria no dia seguinte, pois agora eles tinham mais almas do que o estimado para atenderem e remanejar aos novos ciclos.

Quando tudo ficou numa situação de semi tranquilidade, Julie foi até a central de contagem e arquivamento, onde os computadores, as luzes e telas faziam o seu ofício de sempre. Ela entrou na construção que se destacava por ser a mais retangular do pós-vida e viu os colegas se esforçando incansavelmente, listando todas as almas recém-chegadas para que o trabalho do dia fosse iniciado sem maiores dores de cabeça. Se bem que a Mentora teria que cuidar de pelo menos umas cinco almas simultaneamente no dia posterior.

A maioria dos Contadores estavam vidrados em suas telas, com os dedos batendo nas teclas, preenchendo dados e mais dados. Porém, a pessoa que ela procurava estava num canto isolado, praticamente o único sem uma tela acesa, pelo menos naquele momento. Ela usava um instrumento humano antigo, normalmente para fazer contas. Nada mais era do que um ábaco, que mesmo com todos os métodos modernos e a tecnologia que o pós-vida recebeu com passar dos milênios, ela fazia questão de usar. Era a Grande Contadora Isadora, que mantinha toda essa parte funcionando a pleno vapor. E mesmo usando um instrumento arcaico, ela nunca errara uma contagem. Por esse motivo que Julie buscou-a.

Encontrou-a com o ábaco em mãos, arrastando as contas de um lado a outro pelas hastes horizontais do objeto, enquanto contava mentalmente também. Julie aguardou um pouco para não atrapalhar a contagem. Quando percebeu que acabara, foi falar com ela:

- Olá, contadora Isadora.

- Ah, jovem mentora Julie. O que lhe traz aqui? Soube que tiveram um dia agitado e não é para menos, mais de 10 mil almas retornaram hoje.

- Tudo isso?

- Sim, por isso que estava contando até agora. E os outros já estão com os nomes de todos, porque a grande labuta já começará amanhã.

- Entendi. E sabe o que está acontecendo lá na Terra? Por que nenhum dos recém-chegados e nem dos Conselheiros falou nada sobre.

- Querida, a situação está bastante complicada por lá. Essa doença ainda vai trazer muitas almas de volta para cá.

- É sério?

- Sim! Acontece de tempos em tempos. Em maiores ou menores escalas. Você nunca pegou uma né?

- Não! - ela respondeu nervosa - Mas, é muito grave o que está acontecendo? E algum Conselheiro veio aqui?

- É grave sim! E a Grande Conselheira já veio falar comigo e disse exatamente a mesma coisa a ela: dias de muito trabalho virão. Devemos nos preparar!

Ficaram alguns segundos de silêncio, até que a Contadora Isadora falasse de novo.

- E por que você veio aqui? É só uma mentora menor.

- Eu fiquei preocupada. - foi sincera - Ainda mais que os Conselheiros vão demorar alguns dias para realmente nos contar qual é a situação.

- Sabe que eles têm que apurar isso, não é? Por isso leva este tempo. Nem os da Terra estão entendendo o que é isso, nós menos ainda. Apenas tenha calma, que logo tudo vai se ajeitar…

- Só que primeiro vem o caos! - completou

- Exatamente! Mas, fique tranquila e se preocupe em fazer a sua função como Mentora para que essas almas recém-chegadas possam logo retornar.

- Farei isso! Obrigada pelas respostas e me perdoe incomodá-la.

- Ora, por nada. É sempre bom receber alguma visita. Nós da contagem ficamos mais com os números e outros dados do que com as almas mesmo! - ela riu - Pode vir sempre que quiser. Agora, vá descansar!

- Farei isto! Obrigada!

A Mentora Julie então retornou a seu quarto para ter um período de descanso, pois os próximos dias seriam de muito trabalho.


***


No dia seguinte, enquanto os mentores e os líderes começavam a se organizar para ajudar com os recém-chegados, novamente o alerta soou, jogando-os novamente na cena do dia anterior. Mas, dessa vez, os Mentores foram cuidar das almas sob sua responsabilidade, pois o trabalho não podia parar.

E a situação acabou se repetindo de novo, de novo, outra vez e outra vez, até que eles perdessem a conta da quantidade de dias que o som estridente tocou. Ao ponto de que eles nem lembravam mais como era o silêncio e a calmaria dos dias anteriores. Os Mentores chegavam a recepcionar mais de dez almas num dia e a sobrecarga de serviço já mostrava seus efeitos na eficiência do mesmo, detalhe que também era percebido em trabalhadores de outros setores do pós-vida.

Os líderes apuraram, depois de receberem informações vindas da Terra e do setor de contagem, e perceberam que o que enfrentavam tinha realmente grandes proporções. Não era a primeira vez, nem a última e só existiam duas coisas capazes de algo deste tamanho: guerras e epidemias. E o que eles enfrentavam era justamente o segundo!

Levou realmente alguns dias, pois com a chegada de almas sem interrupção não sobrava tempo para que os Líderes decidissem que procedimentos seriam tomados. Quando mais um dia agitado se encerrava, os cinco grandes se sentavam na sala de reunião, pois eles tinham que decidir o que fazer. E para isso, contavam com a presença da Grande Contadora e seu ábaco.

- Bom, amigos líderes, já temos noção das proporções com o que estamos lidando. - disse a Grande Líder Amanda - A grande chegada de almas está sobrecarregando nossos Mentores, Contadores e todos os outros colaboradores.

- Além disso, segundo minhas contas, já estamos apresentando uma superpopulação aqui no pós-vida. - disse a Contadora - E isso pode causar um enorme desequilíbrio, como com a questão dos alojamentos ou até de locomoção, quanto até na Terra, que vai perder e muito a sua população.

- Já temos muitos dias com essas grandes chegadas, que realmente estão cansando a todos nós. - disse o Conselheiro Antônio - Precisamos de uma forma mais efetiva de preparar e remanejar estas almas o mais depressa possível.

- Mas tem outro porém, companheiro! - completou a Conselheira Sofia - Para que todos estes que estão voltando para cá consigam seguir para o próximo ciclo na Terra, é preciso que nasçam muitas crianças e sabemos bem que esse não é um processo tão rápido assim. E bom, as taxas de natalidade estão decaindo também.

- Estou ciente disso! Mas não significa que elas tenham de voltar à Terra necessariamente.. Temos muitos outros planetas precisando de almas e com certeza alguns destes recém-chegados podem ir para lá. - respondeu ele

- Contadora, - começou o conselheiro Clarêncio - quanto tempo estima que vai durar a epidemia?

- Difícil dizer… - mexeu as peças de seu instrumento - Se formos levar a última como base, alguns anos terrestres, ou seja, bastantes dias para nós.

- Será que os trabalhadores aguentam até lá? - falou o Conselheiro Eduardo - Muitos deles jamais viram algo deste tamanho.

- Sempre há uma primeira vez! - soltou a Grande Conselheira Amanda - Primeira teremos este caos todos, mas com o tempo tudo vai se arrumar… Como sempre fazemos! Sugiro que coloquemos o máximo de nossas forças nas recepções das almas recém-chegadas, para que mais cedo façam o treinamento.

- Ainda digo mais, amigos, - disse Antônio - algumas destas almas podem ser convertidas em colaboradores para este período de emergência. Toda ajuda será bem-vinda, com certeza!

- Vamos ver quais setores estão com disponibilidade de ceder de suas equipes para este ofício temporário e vamos colocá-los nesta função até que tudo se ajeite. - acrescentou Clarêncio

- Contadora, tem mão de obra a nos oferecer? Sei que estão bem ocupados, pois vocês manejam todos os dados destas almas…

- É verdade o que disse, companheiro. - Isadora sorriu - Mas posso colocar alguns dos meus nessa linha de frente. Quero, tanto quanto vocês, que tudo se equilibre novamente.

- Então, força total a partir de amanhã! - disse a Conselheira Sofia

- Vamos chamar os Mentores e os outros e explicar tudo o mais cedo possível. O plano precisar entrar em prática em breve! - fechou a Grande líder

Naquele momento, a reunião se deu por encerrada e oficialmente o plano de contenção e controle daquela situação começou a ser posto em prática.

Já na manhã seguinte, todos os funcionários do pós-vida foram chamados ao anfiteatro e os Líderes fizeram questão de explicar tudo o que fora acordado e conversado entre eles na noite anterior. Os funcionários que seriam os Mentores de Emergência foram escolhidos e naquele primeiro dia na nova função acompanhariam outros para conhecerem o que deveriam fazer. Após isso, eles mesmos pegariam almas para fazer a função devida.

Seria algo bastante árduo e complicado, pois assim que a reunião terminou, o alarme emitiu seu som novamente e todos se puseram novamente a seus postos.


***


Diversos dias se passaram, muitas e muitas almas retornam ao pós-vida, sendo consideradas por muitos na Terra como vítimas da epidemia. Quando chegavam naquele outro lado, a maioria se encontrava ou muito perdida ou bastante triste. E era sempre bem comum perguntarem bastante. O que tinha acontecido, como estavam suas famílias, o que era aquele lugar.

Os colaboradores remanejados passaram por um treinamento intensivo e de choque e já estavam assumindo muito bem as novas responsabilidades. Então, apesar do ainda caos, a coisa começava a se controlar um pouco melhor, pois as tarefas estavam divididas entre mais membros.

Ao final de mais um longo ciclo de trabalho, a Mentora Julie foi conversar com a Contadora Isadora, que, como sempre, estava em seu posto.

- Ora, olá, minha jovem. - disse assim que viu - Como está?

- Estou bem! Cansada, mas bem! E você?

- Trabalhando tanto quanto você, ainda mais agora que perdi alguns de meus funcionários.

- As coisas na Terra… Como andam?

- Na mesma, minha querida. A coisa parece que só piora!

- Sério? Então virão mesmo muito almas, talvez por anos?

- Sim! Mas, como o tempo também, além de nossa ocupação, as coisas vão se arrumar.

- Parece que não tem fim…

- Sei como é… Estamos no… Como é a expressão? - mexeu numa peça para recordar - Ah, sim, no olho do furacão.

- Espero que o que você diz seja verdade… De que com o tempo tudo se ajeita.

- Não digo da boca para fora, jovem mentora. São dados! Dos meus muitos anos nesta função. Primeiro sempre vem o caos, depois a gente ajuda na arrumação para que depois o tempo coloque tudo em equilíbrio novamente.

Elas ficaram alguns segundos em silêncio, até a Contadora declarou:

- Pelo menos, você aparenta estar menos cansada do que no outro dia.

- Sim! - sorriu - A sobrecarga deu uma aliviada.

- Ah, que bom! - riu de volta - Mas saiba que estes são só os primeiros dias de um período de destruição e renovação.

- Então, acho melhor eu ir descansar né?

- Sim, faça isso. Amanhã será outro dia daqueles. - puxou várias peças para um lado só do ábaco

- Descanse você também.

- Pode deixar! - disse colocando o instrumento sob a mesa - E obrigada pela visita.

- Ora, não tem de quê! Sinto que você precisa conversar e eu também.

Cada uma se dirigiu a seu quarto para tirar um tempo de descanso, pois, conforme disse a Contadora, seria mais um dos dias caóticos no pós-vida.


***

Os dias se tornaram meses, que depois se tornaram um ano. Nas primeiras semanas, realmente a coisa foi mais complicada, mas com o passar, talvez pelo ritmo e costume com o serviço, tudo foi se tornando cada vez mais fácil e menos cansativo de se fazer.

Ainda aconteciam pequenos picos de retornos de almas, seguidos de alguns dias com poucos recém-chegados. Não era mais todo dia que o alarme apitava, então os trabalhadores já sentiam que a volta do equilíbrio se aproximava.

Até as notícias da Terra eram animadoras! Toda a humanidade se mobilizou e conseguiu produzir uma vacina para a tal doença em um período recorde. A população já estava tomando-a, mas claro que isso não impedia a doença de alcançá-los, só que eles não corriam mais um risco de vida como era antes.

E de todas as almas que retornaram anteriormente… Bom, elas já estavam sendo remanejadas, na medida do possível. Uma boa parte, como gratidão pela recepção que receberam, decidiram ficar no pós-vida por mais um tempo, participando do trabalho feito ali.

Já outros foram designados para nascer novamente em outros planetas da galáxia. Enquanto outros já tinham até conseguido voltar e iniciar um novo ciclo na própria Terra. Nunca era certo e sempre igual, mas todos tinham seus novos propósitos traçados e os colocavam em curso.

Mais um dia começa dentre esta rotina e a Mentora Julie se prepara para receber mais almas recém-chegadas. Sua média em meio ao grande caos ficou de seis almas por dia. E nesse processo, eles devem conversar e fazer um passeio pela vida que a pessoa deixou para trás.

Naquele dia, o alarme não soou, mas mesmo assim a chegada seria extensa, pois todos os colaboradores foram chamados, como sempre!

As atividades daquele dia seguiram numa normalidade, todas as almas entenderam o que faziam ali e já estavam cientes do que acontecera com elas. Com a situação daquele jeito na Terra, muitos com mais idade já sabiam da possibilidade.

Julie terminou de atender a alma de número cinco do dia e logo seguiu para a de número seis. Pelas fichas que recebeu, era mais uma idosa vítima da doença, porém o que ela viu diante de si aparentava ter bem menos idade. Era algo bastante comum que as almas não se apresentassem da mesma forma que o corpo que deixavam. Ou assumiam um aspecto mais velho ou mais novo do que realmente eram!

- Nádia? - indagou

- Sim, sou eu mesma! E você, quem é? - perguntou a mulher de meia idade

- Sou Julie, sua mentora e guia aqui no pós-vida.

- Ah, aqui é o mundo espiritual então?

- É um dos nomes também.

- Ah, sim, uma das minhas filhas estuda sobre essas coisas, mas eu nunca entendi muito bem. Mas, fico feliz de ser recebida aqui!

- Aqui diz que você tem 77 anos…

- Sim, eu completei ontem… No hospital…

- Sinto muito!

- Ah, está tudo bem! Eu só fico preocupada com quem eu deixei lá em baixo. - ela sorriu

- Eles vão ficar bem! Inclusive, pode vê-los sempre que quiser!

- Depois que completar a tour pela pós-vida, me preocupo com isso.

- Bem, - começou a mentora - aqui no pós-vida todas as almas se preparam para retornar de novo para outro ciclo de vida, seja aqui na Terra ou em outros planetas. Vou te apresentar as instalações e depois vamos para sua revisão de vida! E claro, com a sua estadia aqui podemos traçar os planos para seus próximos objetivos.

- É tanta coisa né?

- É sim! Mas serão só duas hoje, porque até eu estou cansada. Você é a minha última de hoje.

- De quantas?

- De seis!

- Imagino o quanto vocês não estejam ocupados desde que tudo aquilo começou.

- Não paramos desde o primeiro dia. Fazendo justamente este trabalho! Então, vamos?

- Claro! - respondeu passando o braço no braço da Mentora

Primeiro, veio o passeio por todas as instalações do pós-vida… Primeiro os prédios de alojamentos, mostrando onde ela ficaria. Depois passaram pelos prédios de estudos, da administração, da contagem, das artes e diversos outros. Passaram também pelos lindos jardins que ficavam mais ao centro, com um lindo lago no meio.

Dava para ver o quanto todos aqueles locais estavam lotados, pois muitas outras duplas de Mentores e recém-chegados faziam a mesma coisa.

Por fim, sentaram-se em um dos bancos dali e a Mentora indagou:

- O que achou do passeio?

- Achei maravilhoso. Tudo aqui é muito lindo e organizado. Estou ansiosa para ser moradora daqui por um tempo.

- Com certeza, teremos bastante para fazer.

Ficou um silêncio por alguns segundos até a Julie falasse:

- Agora vamos à segunda parte! Vamos até a central das lembranças, para observar como foi a sua vida.

- Essa parte confesso que estou nervosa…

- Imagino o porquê…

- Será que fiz tudo certo? Será que fui uma boa pessoa? Será que cumpri meus objetivos?

- Não se pressione tanto, Nádia. Qualquer meta que tenha traçado e conseguido cumprir já é uma vitória. E as que não conseguiu, basta tentar outra vez. Fique tranquila que vai dar tudo certo!

- Você passou por isso também?

- Ah, sim! Um bom tempo atrás quando eu vivi na Terra, quer dizer, eu já vivi lá algumas vezes, mas agora estou passando um tempo aqui.

- Fico mais tranquila sabendo disso.

As duas foram até a central das lembranças e entraram em uma das salas, que era apenas um cubículo vazio. A mentora ligou o aparelho localizado em uma das paredes e tudo se acendeu, revelando cenas e mais cenas da vida de Nádia.

A visão presente nas telas era como a visão pelos olhos da recém-chegada. Então, ela se viu criança, acompanhada das duas irmãs e da mãe. Depois saltou para sua adolescência quando ela estudou o pouco que sabia, mas depois a vida lhe ensinou bastante. Quando conheceu o marido, se casou com ele, o nascimento de cada um dos três filhos. A vida sofrida, ainda mais depois que o esposo faleceu num acidente de carro. E tudo o que ela teve que fazer para poder cuidar dos três filhos sozinha a partir dali. 

Muitas cenas que surgiram eram de brigas com os três filhos, especialmente a mais velha, que demonstrava uma “rebeldia” aos olhos dela.

Depois vieram os casamentos dos filhos, os netos… Sendo que alguns deles ficavam sob seus cuidados quando os pais precisavam ir trabalhar.

Viu sua neta mais velha chegar à vida adulta, mas ela não chegou a lhe dar bisnetos. Mas, parecia que Nádia estava bem com isso!

Tanto ela quanto a Mentora Julie terminaram o longo “filme” com lágrimas nos olhos. A Mentora sempre se emocionava em ver as trajetórias dos recém-chegados. Sempre apareciam muitas coisas, pois foram bastantes anos que todos viveram. Só que, por outro lado, isso dentre os inúmeros ciclos antes e depois, era apenas um pequeno piscar de olho. Um pequeno degrau numa escadaria imensa que todas as almas deviam percorrer.

- Um vida e tanto hein? - a Mentora soltou

- Acredito que sim! Se bem que sempre achamos que podíamos ter ido melhor.

- Fez o melhor que você podia. Agora é seguir em frente, mas sem esquecer o que se passou.

- Precisa ser tudo hoje… Foi muito já! - disse secando uma lágrima

- Nós já acabamos. Depois, vamos avaliar o que vimos e traçar o que fazer. Só que será no seu tempo.

- Então, eu posso ajudar vocês aqui?

- Como assim?

- Quero trabalhar recebendo almas também.

- Ah, claro que pode. Depois converse melhor com algum superior, mas imagino que tenha que fazer o “estágio” - girou o dedo no ar, indicando ser parte daquilo que estavam fazendo antes - primeiro!

- Liberada por hoje? - Nádia sorriu

- É claro!

Então, elas retornaram até o jardim e ficaram por lá conversando. Poucas horas depois, todos foram descansar em seus alojamentos.

Nádia ficou de conversar sobre seus interesses mais tarde!


***


Alguns dias depois de sua chegada e logo na sequência da conclusão de sua adaptação no pós-vida, Nádia e Julie foram juntas para falar com os Líderes para saber se ela poderia se tornar uma colaboradora daquele local.

O superior a quem era designado à função de direcionar novos trabalhadores era a Sofia. Então, com a reunião devidamente marcada - o que foi bem difícil, ainda mais no meio do caos - elas foram conversar com a líder. 

- Olá, irmãs, a que devo a presença de vocês aqui hoje? - indagou a Líder

- Bom, Conselheira Sofia, a Nádia chegou aqui no pós-vida tem poucos dias, mas ela gostaria muito de ajudar na recepção de outras almas.

- É ótimo ouvir isto, pois toda ajuda está sendo necessária agora.

- E o que eu devo fazer para começar?

- Então, fazer parte do grupo que recebe os recém-chegados é um grande privilégio. Sua Mentora aqui ao lado, quando retornou ao pós-vida quis, como você, trabalhar e nos auxiliar. Porém, devemos sempre começar de baixo. Aqui não existem algumas regalias igual na Terra. Então, se quer mesmo, ficará com uma função inferior e irá subindo até o seu posto desejado. Tem algum problema com isso?

- Não, não tenho nenhum. Desde que eu possa fazê-lo, não me importo.

- Ótimo! Então, encare todo o caminho como um longo estágio. - sorriu a Mentora

- Começará amanhã então! - disse a líder - A mentora Julie será sua guia e supervisora.

- Obrigada! - respondeu Nádia - Antes, eu tenho uma pergunta: Por que não poderia começar direto na função que eu quero?

- Bom, é um pouco complicado de explicar. - disse a Mentora

- Entendemos que cada um tem seus méritos e feitos nas vidas que deixaram para trás. Porém, aqui as coisas funcionam de uma forma diferente da Terra, temos nossas próprias regras. Mesmo se for um doutor que chegue aqui, vai começar de baixo e ir subindo, como todos nós fizemos. Eu e todos os outros Líderes fomos como você, Nádia, recém-chegados e só estamos em nossas funções por conta de nosso trabalho árduo.

- E em que não recebemos nada… Material! - complementou a Julie

- Exatamente! - concordou a Líder Sofia - Até porque muitos dos “novos” não entendem a forma que este lugar funciona tão rapidamente, até para isso é preciso tempo.

- Agradeço pelo esclarecimento. Farei de tudo para colaborar dando o meu melhor.

- É exatamente disso que precisamos! - animou-se Sofia - Se não tem nada mais, estão dispensadas.

A dupla saiu do local e a Mentora ficou bastante feliz de ver que a recém-chegada veio com bastante vontade de auxiliar, o que era bem raro. Muitos dos que retornavam tinham muitas questões pessoais e egoístas e pouco se preocupavam além do que deviam fazer por si mesmos.

Então, a Mentora arranjou mais uma amiga de estrada no pós-vida.


***


Muito tempo se passou, anos se for contar pelo relógio da Terra. Os contadores finalmente tinham se estabilizado e o pequeno período com superpopulação no pós-vida se tornaram apenas algumas memórias distantes, que todos esperavam que demorassem a se repetir.

O som das sirenes de alerta também já eram apenas uma vaga lembrança, assim como aqueles primeiros dias, onde milhares e milhares de recém-chegados atravessaram às portas do Recanto das Almas, muito perdidos e até feridos em seus espíritos.

O caos que se instaurou, tudo o que os Líderes precisaram fazer para manejar a situação. Toda a força-tarefa que se moveu para que todas as almas fossem bem recebidas e guiadas, mesmo que em muitos desses momentos os próprios Mentores terminassem cada ciclo de trabalho muito cansados.

O tempo passou e, conforme dito pela Grande Contadora Isadora, tudo foi se ajeitando e se estabilizando. As almas pouco ficaram estacionadas no pós-vida, planejando e traçando seus novos caminhos e ciclos, fossem eles na própria Terra ou em outros planetas. Enquanto outros resolveram ficar ali, para poder também ajudar, da mesma forma que foram em seus momentos de chegada.

A Mentora Julie se prepara para mais um longo dia de esforço, recebendo mais recém-chegados, como sempre fazia. Havia retornado ao normal de receber entre duas a três no mesmo dia, então ela terminava seus atendimentos sentindo-se até bastante disposta.

Nestes anos que se seguiram, ela acompanhou a trajetória de Nádia, que veio como uma vítima do mal que atingiu a Terra, mas se tornou uma excelente trabalhadora e amiga. Começou na função de limpeza, limpando as sujeiras dos doentes espiritualmente; fazendo manutenção nas casas e nos jardins; sendo acompanhante de alguns Mentores para ver o serviço de recepção… Todos degraus de um estágio muito importante e que a prepararam para a sua grande vontade!

E Julie não poderia estar mais feliz pelas amiga! Naquele dia, ela finalmente começaria como Mentora, recebendo almas recém-chegadas, explicando e lhes guiando sobre os trâmites do pós-vida.

Quando chegou ao pátio próximo ao portão, que se encontrava fechado, a amiga já estava lá, esperando. Cumprimentou-a:

- Bom dia, Nádia. Animada em seu primeiro dia como mentora?

- Mais do que animada! - agitou os braços, demonstrando um pouco de nervosismo

- Não se preocupe, amiga. - disse Julie tocando em suas mãos - Você se preparou para isso e vai fazer um excelente trabalho.

- Eu sei disso, mas sempre rola um friozinho na barriga. Mas, eu tive a melhor Mentora para me ajudar. Quero ser a mesma coisa para quem vier a mim.

Julie sorriu, orgulhosa e alegre. Era sempre assim que se sentia ao ver os caminhos que seus mentorados alcançavam, fossem ali ou onde quer que estivessem. Era por isso que fazia o que fazia, com muito prazer.

Então, os portões se abriram, mais um dia de serviço começava e as silhuetas dos primeiros recém-chegados alcançavam a visão de quem os aguardava.


***


“Coisas que não quero perder, coisas que quero manter

Efêmera e muito bonita Todo mundo é estrela cadente


Sentindo-se feliz Sentindo-se dolorido

Olhe para cima, é uma linda estrela, não é?

estrela cintilante


Sentindo-se feliz Sentindo-se dolorido

Sentir-se feliz, sentir-se triste...

Olhe para cima, é uma linda estrela, não é?”


(Ittousei - Minori Chihara)

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