quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Amores Perfeitos


Desde criança, sempre gostei de andar no jardim que ficava na fazenda da minha vó. Passava longas horas sentado vendo as cores das flores, das folhas. Com o vento mexendo meus cabelos. Eu vivia na cidade com meus pais e sempre passava as férias na companhia dos meus avós e meus pais. Corria e me sujava!
Minha avó tinha uma floricultura na pequena cidade onde nasceu e onde meus pais cresceram. Quando fiquei mais velho, quis seguir cuidando (27/10/2018)do pequeno negócio de família. Então, com o avanço da idade da minha vó – que se tornou viúva – resolvi me engajar na loja com ela. Tinha pouco mais de dois anos que tinha me formado na faculdade e era esse o tempo que trabalhava na loja.
Lá nos vendemos todos os tipos de flores e plantas, fazemos buquês ou as mudas que as pessoas queriam plantar em suas casas.  E tem uma em especial, que eu é uma flor que me encanta desde que era pequeno. Até hoje, elas ficam na varanda do casebre a da minha vó. É a Amor Perfeito.  Outra lembrança que tenho com esta flor é que ela aparece em uma das minhas peças favoritas de Shakespeare: Sonho de uma noite de verão. O suco extraído da flor é usado para fazer a poção do amor. Ao se aplicar a poção nos olhos de uma pessoa adormecida, ela se apaixonada pela primeira pessoa que vê assim que acorda. Gostaria muito de ter essa poção na minha vida, de verdade, porque minha vida amorosa é simplesmente um desastre.
Amor Perfeito é só a minha flor favorita. Uma pena que ela é tão desvalorizada. Adoro como ela é pequena, tem diversas cores, cresce bem devagarzinho depois de muito cuidado e paciência no cultivo, como qualquer outra flor. Porém, nunca fiz nenhum buquê usando-as. Uma pena porque são flores lindas!
Por conta disso, ela acaba vendendo até pouco. Ficam apenas umas mudinhas dela em miúdos vasinhos no caixa da nossa loja. Algumas vezes, uns interessados as acham bonitas e levam um. Contudo, ninguém nunca mesmo conseguiu nomear a tal flor.
Até que um dia, mais um cliente veio para fechar a sua compra. Cumprimentou-me e enquanto eu batia os itens e ele parou e olhou as pequenas florezinhas.
- Nossa! Que amores-perfeitos mais lindas. Vou querer levar uma para colocar na minha casa. – disse e depois indagou – São vocês mesmo que criam essas mudas?
- Sim. Criamos na nossa estufa e também no jardim da fazenda. – esse detalhe é importante, pois a loja fica praticamente ao lado da entrada da fazenda.
- Sempre quis ter dessa florzinha em casa, ainda mais depois de ter lido Sonho de uma Noite de Verão.
- Porque é com o líquido dessa flor se faz a poção do amor. – soltamos ao mesmo tempo
Nós rimos e depois trocamos um olhar meio comedido. Uma pequena tensão e atração surgiu, pelo menos do meu lado.
Terminei de passar a compra, recebi o pagamento e a pessoa se despediu. Continuei o meu trabalho normalmente naquele dia, porém sem deixar de pensar naquele que despertou o meu interesse. Eu nunca o tinha visto na região, talvez estivesse só de passagem ou fosse recém-chegado. A cidade era pequena demais e eu conhecia todo mundo, sabia bem que era um rosto novo.
***
Uns dias depois, tive que ir ao centro da cidade para comprar algumas coisas para abastecer o estoque da casa. E numa das casas, eu vi, num canteiro, algumas amores-perfeitos e eu tenho a percepção de reconhecer as flores que eu cultivo mesmo depois de um bom tempo. Sabia bem quem era o dono. E não foi surpresa ele aparecer na janela e acenar ao me avistar. Eu já estava voltando com as sacolas lotadas de compras.
- Ei, precisa de ajuda com isso? – indagou
Nem precisei responder. Saiu imediatamente e pegou as bolsas que carregava em uma das mãos.
- Não tem carro para levar isso? A sua loja não é assim tão perto daqui.
- Tenho sim. É que estacionei um pouco longe, a cidade está cheia de turistas.
- Então, vou com você até o carro.
- Agradeço.
- Não é nada!
Era uma breve caminhada de cinco minutos, mas foi o suficiente para perguntar o que eu queria saber.
- Você é novo na cidade? Nunca lhe vi.
- Sou sim! Mudei tem pouco mais de uma semana.
- E por quê?
- Bem, minha mãe morava naquela casa e eu vim para o enterro dela. Resolvi me instalar por aqui também.
- E com o que você trabalha?
- Sou escritor. – falou sorrindo, sem graça
- Nossa, que legal. Sempre quis escrever um livro.
- O segredo é começar. Até tem técnica, mas só se aprende com o tempo. O início é com o que você sente.
- E sobre o que escreve?
- Eu escrevo para a coluna de um jornal e para uma revista. Mas, fui convidado a publicar um livro, então vim para cá buscar inspiração. Foi aqui que vivi na infância.
- Deve ser um lugar ótimo para tal. Ainda mais porque a cidade é tranquila.
- Sim.
- Obrigado pela ajuda. – chegamos ao carro – Bem que você podia me dar umas dicas para começar o meu livro?
- De nada. E claro que posso! Só marcarmos um dia.
Nos despedimos e entrei no carro, liguei o carro e sai, vendo ele ficar cada vez menor no retrovisor do carro.
***
Não foi muito difícil a gente se reencontrar, mesmo sem trocar os números de telefone. Cidade pequena, pouco gente, acabamos nos cruzando de novo. Novamente no centro, porque eu fui ver uma amiga que estava viajando por ali. Eu e minha amiga estávamos sentados conversando num barzinho, até que ele apareceu e ao me ver me chamou e eu, sorrindo, respondi:
- Que bom lhe ver de novo.
Apresentei-o a minha amiga e vice-versa.  Ele se juntou a nós na mesa e se juntou a nossa conversa. Era legal ter contato com pessoas diferentes, porque aqui é tudo muito a mesma coisa. A mesma rotina e as mesmas pessoas. Eu não reclamo, até gosto, mas tem momentos em que sinto saudade da cidade.
E claro, fiquei observando o novo escritor presente na cidade, ou melhor, presente naquela conversa. E como tudo nele me atraia de uma forma que eu não sabia explicar. Os trejeitos, o jeito de falar, a risada. Eu estava observando encantado. Ainda bem que nem ele e nem minha amiga perceberam.
Depois de algumas horas de conversa, cada um de nós seguiu para sua casa, sendo que minha amiga foi ao hotel em que estava hospedada.
***
Mais alguns dias passaram. Minha amiga já retornara para a cidade, mas sem antes vir conhecer a fazenda e a loja que mantenho com a minha avó.
E também recebi mais uma visita ilustre naquele dia, o do meu mais novo crush. Ele tinha ligado e conversado com a minha vó e pediu para ir lá para poder pegar algumas inspirações para seu novo livro, além de conseguir algumas informações sobre as flores. Não pude evitar de perguntar:
- Vai escrever sobre flores?
- Sim. Alias, esse é um elemento muito importante para história que tive.
Posso me derreter agora?
- Que legal! – sorri
- Não se preocupe que vou lhe ajudar a escrever o seu também.
- Bem, na verdade, eu já tenho um livro, mas nunca mostrei a ninguém.
- Sério? E sobre o que é?
- Sobre minha adolescência na cidade e em como decidir vir morar nesse “fim de mundo”. – frisei as aspas no ar
- É pessoal, como um diário?
- Não. É mais inspirado do que qualquer outra coisa. É que você disse que era escritor e vi como uma oportunidade de alguém lê-lo finalmente e dar uma opinião concreta sobre. Desculpe!
- Que isso. Não tem problema nenhum. Vai ser um prazer ler o seu.
- Espero ter o prazer de ler o seu também. – confessei
- Isso só quando ele for lançado. Meu editor vai ver primeiro.
Então, junto com vovó, passeamos com o visitante e ele perguntava tudo e anotava também.
E bem, como precisava de uma opinião sobre o que escrevi. Peguei uma cópia do meu manuscrito e dei a ele. Ele disse que não atrapalharia a escrita do livro. Trocamos os contatos para podermos nos comunicar melhor se necessário.
***
Eis que ele me chamou para ir a casa dele em uma tarde. Acredito que ele finalmente terminara de ler o meu escrito. E eu estava nervoso quanto ao que ele ia achar! E eu estava certo. Cumprimentamo-nos e ele foi direto ao assunto.
- Bem, aqui está seu manuscrito. – devolveu-me e percebia que tinha algo de diferente nele -  Como vou dizer isso? Olha, tá bem... Ruim. – ao ouvir isso, eu fiquei devastado – Como explicar? A história está rasa, corrida, mas eu adorei os personagens. Só talvez dar uma revisada e alterar algumas coisas.
Era uma crítica normal, mas ouvi-la vir do meu mais novo crush, quebrou todo o encanto que eu tinha por ele. Eu me abri para ele, no sentido de mostrar algo que escrevi num dos momentos mais difíceis da minha vida, que foi quando decidi me mudar para o interior. Aquilo me pegou de um lado pessoal e eu senti mesmo. E eu não queria ficar lá nem mais um segundo, porque aquilo me magoou e muito.
Ele continuou falando e eu simplesmente abstrai, fingia que estava ali, mas não estava. Chamou-me para tomar um café e eu recusei, dizendo ter um outro compromisso. Era mentira!
E desde então, dava desculpas para não ir a todos os convites dele. Até que houve um momento em que ele percebeu e simplesmente parou.
Umas semanas depois, soube que o escritor tinha retornado a cidade e eu respirei em paz. Não precisaria mais ficar me esquivando e me escondendo. Continuei levando minha vida um dia de cada vez. Uma flor de cada vez!
***
Mais semanas depois, finalmente tomei coragem para finalmente olhar aquele manuscrito que o meu ex-crush rejeitara. E folheando as páginas percebi que ele fez diversos rabiscos e apontamentos, quem ele pensava que era? Opa, eu quem pedi a ajuda dele. E na primeira negativa e reprovação, eu não gostei. Como eu era ridículo!
Fui relendo o texto e os comentários e notei que tudo aquilo fazia muito sentido. Ele tinha mais experiência que eu. Acho que fiquei tão cego pela atração dele, que levei a rejeição ao meu texto como uma rejeição a mim. Como a gente exagera! Decidi que pegaria e reescreveria o texto inteiro, tentando seguir as dicas.
Eis que, ao fazer isso, senti que a escrita fluía de uma forma que nunca fora antes. Lembro de todo o tempo que levei para escrever da primeira vez. Da segunda vez, foi em pouco mais de um mês. E claro, em muitos momentos pensando no meu ajudante de escrita. Eu tinha agora um segundo rascunho, mas não sei se mandaria esse.
Minha vó me chama, pois havia chegado alguma encomenda para mim. Olhei o embrulho e abri, era um livro chamado “Amores Perfeitos”. E ele estava autografado pelo autor, que eu sabia bem quem era. Tinha uma dedicatória grande, escrita numa carta. E estava assim:
“Querido ex-crush,
Você deve estar se perguntando por que diabos recebeu uma cópia do meu livro depois de tanto tempo se nos falarmos?
Eu senti que precisava lhe enviar o livro. Pois, ironicamente você foi a minha inspiração nele. Você e aquela pequena muda de Amor-perfeito que eu comprei.
Fui a sua cidade com o intuito de enterrar a minha mãe e aproveitei para tentar conseguir escrever o meu livro. Meu editor já estava me pressionando e eu não tinha escrito uma linha sequer. Estava bloqueado e tinha um prazo.
E ai, apareceu você. Com seu sorriso e que me lembrou sobre a Poção do amor que se faz com a suco da Amor Perfeito. E esse foi o estalo que eu precisava. O choque de nossas mãos me deu uma energia, mas foi tanta, que eu escrevi tantas páginas que perdi a conta. Pensar em você fazia com que meu livro fluísse e a história dele fosse contada. E você é minha inspiração nesse detalhe também.
Imaginei um homem simples do interior, que depois de um tempo percebi que era alguém que era da cidade e decidiu morar no campo. Aquilo me incendiou por dentro, um fogo para continuar a escrever que eu virei a noite.
E então, você pediu para ler o seu livro. E eu, com todo o carinho que passei a nutrir por você, fui ler. E bem, não foi o melhor livro que li em minha vida, mas tinha muito potencial para ser excelente. Só que eu não consegui te falar isso naquela tarde que devolvi o manuscrito. O jeito que você reagiu acabou comigo. Mas, me fez acordar para outra coisa: Te tirar do pedestal da perfeição que lhe coloquei, ou melhor, coloquei o personagem.
Tentei retomar o contato, mas vi que havia lhe magoado de uma forma sem volta, então, lhe dei o seu espaço. Dediquei-me a terminar o meu livro e apenas isso.
Com o livro pronto. Fiz minhas malas e parti, talvez para nunca mais voltar. Voltar aqui e ter que lhe ver de novo e me olhando com aquela cara? Melhor  não!
Meu editor amou o livro do início ao fim, não queria mudar nada. E foi ai que eu percebi outra coisa, eu tinha menosprezado algo que me deu muito: Você. Eu disse que o seu livro não era bom e não você, mas acabei dando a entender as duas coisas juntas. Até então o livro não tinha título e ganhou este que esta vendo, por causa de tudo isso.
Não quero que me perdoe. Eu só queria escrever e lhe contar o meu ponto de vista de tudo.
Espero que tenham lido o manuscrito que alterei, pois ali lhe dei muitas dicas e espero que as tenha usado para reescrever o livro. E se tiver feito isto, terei o prazer de reler.
Admito também que me apaixonei por você. E foi horrível ter que deixar você ir embora.
Qualquer coisa, se quiser me ver, estarei numa sessão de autógrafos esta noite lá no centro da cidade.
Beijos!”
Ao ler a aquela carta de amor, não pensei nem duas vezes. Fui me arrumar para ir ao centro da cidade, porque eu precisava vê-lo de novo e lhe entregar o novo manuscrito.

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