sexta-feira, 15 de abril de 2022

Capítulo 32 - Família e Ausência

 

Em meio a todo aquele dia horrível, em que praticamente o meu trabalho inteiro ia pelo ralo, ainda tinha que lidar com uma ligação da minha mãe, que disse que meu irmão viu umas coisas com relação a mim na internet.

Não sei o que ela vai falar, mas eu pressinto que não é coisa boa. Nunca é!

Respirei fundo, tomando coragem e indaguei:

- E o que ele viu?

- Um vídeo seu e daquele menino que trouxe aqui em casa. - respondeu confirmando as suspeitas - Também vi as suas fotos… Pelada! E sobre você ser a criadora daquele blog sem vergonha. - foi então que eu senti que o sermão vinha com força - Eu não criei filha minha para que ela fique falando sobre essas coisas e também exibindo o corpo para quem quiser ver. Além disso, fica fazendo filme pornô.

E a sua fala seguiu, com ela contando todo o sofrimento que ela e meu pai tiveram para criar a mim e aos meus irmãos. Sobre o quanto era vergonhoso para ela que a sua filha fosse a tal da Echii. O que os vizinhos iriam achar? O que os outros parentes iam achar? Ela ia destilando suas palavras que chegavam a mim através do alto falante do celular, enquanto as lágrimas não paravam de escorrer pelos meus olhos. Já não bastava a humilhação pública e todo o hate na internet, tinha que ouvir aquilo tudo.

Por fim, falei:

- Rita, essas imagens minhas foram divulgadas sem autorização. Não fui quem espalhou!

- Mas você tirou essas fotos e filmou o vídeo e ficou escrevendo aquilo tudo. Você não se dá ao respeito, minha filha.

Foi aí que meu sangue subiu a cabeça. Tudo que eu queria era mais um sentimento me destruindo: a raiva. Porém, Marina logo percebeu a situação e me tomou o telefone.

- Mãe, olha só, a Helena não está bem. Tudo o que ela menos precisa agora é de mais uma pessoa apontando e a culpando pelo que fez. Ela não tem culpa de nada do que houve, estamos tentando encontrar o culpado e ele vai sofrer as consequências. - um breve silêncio, pois mamãe gritava ao telefone - Se acalma. Amanhã eu e Helena iremos aí para conversar, está bem? Beijo! - e desligou

- Obrigada por isso! - sorriu ainda tristonha para ela

- Tudo bem, mana. Já disse que pode contar comigo.

- Estou com medo de amanhã. Eu nunca consegui encarar a mãe igual você faz. Ela acha que sou a vergonha da família.

- Provavelmente o Arthur já a envenenou com toda essa história. Vamos tentar mostrar nosso lado.

- Ela não me escuta! - rebati

- A mim muito menos. Mas, quem sabe, ouvindo as duas filhas falando, ela não entenda.

- Podemos tentar pelo menos. - tentei me animar

- Maninha, descanse. Pense com relação a como vai fazer para contornar essa situação.

- Precisarei dar uma pequena pausa no blog para pensar melhor.

- Ótimo! Então, peguei seu computador e escreva sobre isso para seus leitores. É essencial que pelo menos se pronuncie de alguma maneira.

- Tem razão!

Levantei do sofá, peguei o computador no escritório e voltei, desta vez sentando ao lado de minha irmã, que estava a todo o vapor observando as minhas redes sociais e também falando no grupo força tarefa. Porém, eu nem prestei atenção sobre o que estavam conversando, já que estava concentrada escrevendo o texto para colocar no blog.

Não sei se ficaria fora uma semana, um mês ou para sempre. Contudo, eu precisava mesmo tirar este tempo de lá e deixar a poeira baixar. Quem sabe eles não esquecessem logo? É assim com tudo na internet!

Fui colocando as palavras no editor de texto com todos os meus sentimentos transbordando. Essas mesmas palavras eram o começo de eu juntar os meus caquinhos e começar a me consertar novamente.

Quando acabei, mostrei a minha irmã, que disse estar muito bom e que podia postá-lo imediatamente. Assim o fiz, desligando em seguida o computador e indo ver um filme.

Já havia anoitecido há um tempo e aquele dia complicado estava chegando ao fim, mas creio que as consequências dele ainda vão perdurar por um tempo.

E foi neste momento que pensei em Gustavo. A forma que ele apareceu aqui na porta, todo machucado e disse ter provas sobre quem fez isso - o bendito Matheus, não fui com a cara dele quando o conheci.

Não é a mesma coisa do que comigo, porém imagino o quanto ele está chateado com toda essa situação também. Claro que eu o culpei num primeiro momento e fazia sentido. Só que agora toda essa raiva e tristeza não estava direcionadas mais a ele, mas para os comentários negativos de todos, incluindo a minha mãe. Ou seja, eu fiz uma merda com o Gustavo e não sei como posso voltar atrás, já que praticamente o expulsei da minha casa hoje.

O meu coração se quebrou ainda mais quando o celular vibrou e fui olhar o que era: uma mensagem do Gustavo. Li, comecei a chorar e não tive coragem de responder.

***

Tive umas das piores noites de sono da minha vida. Ou melhor, eu dormi pouco, tamanha é a minha preocupação com tudo o que está acontecendo.

Levantei e minha irmã já tinha posto a mesa do café e estava me esperando. Acho que ela passou na padaria, porque claramente não tinha metade daquelas coisas na minha despensa.

- Bom dia, irmã! - sorriu assim que me viu - Comprei umas coisinhas pra tomarmos café juntas e te animar um pouco.

- Bom dia, mana! - sorri de volta

- Dormiu bem?

- Na verdade não. Eu mal preguei o olho. Minha cabeça continua a mil!

- Eu imagino. Bem, tenho uma coisa boa para te contar: o vídeo e as fotos foram retirados do site. Ainda estamos procurando se tem réplicas em mais algum lugar, mas não encontramos ainda.

- Não sei o que seria de mim sem vocês. - falei sentando por fim

Então, começamos a comer e continuamos a conversa.

- Já falou com o Gustavo?

- Ainda não. Ele até me mandou mensagem ontem, só não tive coragem de responder.

- A gravação que ele conseguiu vai ajudar bastante, é uma confissão praticamente.

- O problema é que ele agrediu esse ex-amigo dele e o Pedro também.

- Será que finalmente o Pedro larga do seu pé, depois dessa história toda? - questionou

- Quem sabe? - respondi desanimada - Que horas iremos na mamãe?

- Pro almoço! Ela ligou ainda agora para marcar.

- Eu estou com medo do que ela pode falar.

- Mana, venhamos e convenhamos que nós duas nunca fomos as filhas que nossa mãe sonhou. Só o Arthur é o filho querido dela.

E rimos, pois era a mais pura verdade. Não que eu e minha irmã fossemos rebeldes enquanto adolescentes, mas para a Rita tudo era motivo. Desde ficar até mais tarde na casa de alguém a sair com os amigos ou até beber um pouco, sempre via defeito.

Fiquei perdida nesse pequeno devaneio e Marina voltou a falar:

- Até porque eu também tenho uma coisa a contar. - fazendo suspense

- E o que seria? - perguntei curiosa

- Bom, sabe a minha “amiga” que está morando junto comigo? - ela não esperou que eu respondesse - É minha namorada!

- Sério?! - sorri sinceramente - Fico feliz por vocês duas. Mesmo! - falei pegando em sua mão

Sempre tive a pequena suspeita de que minha irmã gostava de meninas também. Ela já tinha namorado algumas vezes com homens, porém com meninas só havia ficado, geralmente até nas festas que íamos juntas. Eu já sabia sobre a sexualidade dela, a surpresa foi o namoro mesmo.

Terminamos de tomar café conversando sobre trivialidades. Depois limpamos tudo e nos arrumamos para ir a casa de nossos pais, porque esse dia prometia que seria longo.

Descemos para a garagem e eu fui dirigindo, enquanto a playlist tocava no máximo dentro do carro e nós duas cantávamos a plenos pulmões. Era a nossa forma de extravasar, ainda mais que vinham duas “bombas” daquelas pros nossos pais. A filha piranha - no caso, eu - e a sapatão - a minha irmã; as duas desvirtuadas.

O caminho foi rápido, já que nos distraímos com a música. Estacionei na frente da casa e chamamos no portão. Logo nosso pai veio nos atender e nos recebeu com um abraço bem apertado. E se dirigiu a mim em seguida:

- Filha, fiquei sabendo daquela coisa de ontem. Quero que saiba que te apoio!

- Obrigada, pai. - pelo menos uma parte desse casal apoiava as filhas

Entramos e lá estava a minha mãe na cozinha fazendo o almoço. Nos cumprimentou quando nos viu, contudo olhou para mim de cara feia e só falou:

- Nós precisamos conversar, mocinha!

Um calafrio subiu pela minha espinha no instante em que ela terminou a frase. Eu e minha irmã sentamos na mesa ali na cozinha e a Rita começou a despejar tudo o que estava entalado nela e não era nada muito diferente do que sempre ouvíamos ou do que ela queria me dizer ao telefone no dia anterior. E fechou a tampa do caixão com uma coisinha:

- O que os vizinhos vão achar? - e olhou para mim - Saiba que essa história já rodou a rua inteira. Que vergonha!

- Vergonha de quê, Rita? - eu retruquei - Eu sou só vítima nessa história. Não espalhei as fotos de propósito.

- Ainda foi aquele garoto que recebi nesta casa. Senti que ele não era boa coisa.

- Não foi ele! - falei

Eis que meu irmão chegou ao recinto:

- Ora, ora, se não são minhas irmãs queridas. Ainda mais essa daqui que é uma estrela pornô.

- Vai tomar no cu, Arthur.

- Calma, não fique estressada. - debochou - Faz e acontece na internet e não posso falar nada.

Bufei, não queria discutir mais, pois não ia chegar a lugar nenhum. Meu pai também apareceu na cozinha, já era quase hora de comer.

- Alias, eu tenho uma coisa para contar a vocês também. - Marina soltou

- Oh, não, você é estrela pornô também? - Arthur quis fazer graça de novo

- Vai a merda, Arthur, é sério. Enfim, sabem aquela amiga com quem estou morando agora?

- O que tem? - mamãe questionou

- Bem, ela não é bem amiga, é a minha namorada.

- Era só o que me faltava agora. - reclamou Rita

- Querida calma.- meu pai respondeu - Fico feliz por vocês duas, filha. - segurou nas mãos da minha irmã

- Onde foi que eu errei com essas duas? Por que vocês não são como seu irmão?

Ela não vai começar com isso, vai?

- Você não errou em nada, mãe! Eu sou assim desde sempre. Na verdade, eu gosto é dos dois.

- E nem comigo! Eu gosto de falar abertamente sobre um assunto que não é tão bem visto. Porém, acho que devemos falar. A questão das fotos era um projeto por fora e que eu sempre sonhei em fazer, mas não contava que fosse acontecer isto tudo.

- Nem sei como vou encarar o resto da família e da rua depois disso. - ela simplesmente ignorou o que falamos - Uma filha piranha e uma sapatão…

- Sério que está preocupada com isto? - Marina reclamou - Com que os outros vão achar? Helena está passando por um dos piores momentos dela, movendo um processo contra a pessoa que divulgou a imagem, mas pode perder o trabalho de anos no processo. E eu… Levei muito tempo para aceitar que sinto as mesmas coisas por meninos e por meninas também.

- Mãe, - falei para chamar sua atenção - quer saber mesmo qual foi o seu erro? A sua ausência, em muitos momentos. Tanto comigo quanto com a Marina. Quando terminei com o Pedro e você não me deu apoio algum, continua recebendo-o aqui em casa como se nada tivesse acontecido. Eu e ela nunca tivemos uma mínima abertura para conversar o que quer que fosse com você, já que nós não somos as filhas perfeitas, não como o Arthur é né?

- Ei, não me mete nos teus B.O.s! - gritou meu irmão

- Cala a boca! - Marina respondeu a altura

- Marina trabalha e faz a faculdade dela. Eu já me formei, trabalhei e estou com o blog que está me rendendo uma grana boa. Somos independentes, não moramos mais aqui e não dependemos do dinheiro de vocês. Nós duas nunca demos trabalho, sempre fomos responsáveis com tudo o que fazemos. O que falta para sermos as filhas perfeitas que tanto quer? - comecei a chorar - Sabe, mãe, eu só estou cansada de tentar atender às suas expectativas irreais. Nada do que faço é bom ou suficiente para você. Se dependesse de ti, eu estava afundada naquele relacionamento de merda e abusivo com o Pedro, que não me deixava fazer nada. Ainda bem que eu consegui sair, porém ele ainda não saiu da minha vida e isso me perturba muito. Não faz ideia de quantas vezes me mudei só porque tenho medo do que ele pode fazer comigo.

Marina pegou um copo de água e me entregou. Estava precisando!

Rita se manteve imóvel, olhando para mim durante o meu grande monólogo, sem dizer uma palavra. Não faço ideia do que se passa na cabeça dela agora.

- Mana, - falou minha irmã - acho melhor a gente ir.

Assenti. Foi péssimo deixar aquele climão todo, mas acho que minha mãe precisava de um choque de realidade. Eu já estava me sentindo horrível por conta de todo o acontecimento dos últimos dias, não precisava dela me criticando também. Talvez tenha sido meio injusta de apenas despejar tudo o que guardei por anos, só que um dia ela teria que ouvir o que sempre queremos dizer e não o fazemos.

Despedimo-nos e falei para que todos pensassem sobre o que foi conversado ali, mesmo que não tenha sido dito da maneira correta, mas eu precisava desabafar.

Eu e Marina voltamos para o carro e eu a deixei na porta do trabalho. Ela já tinha tirado um dia de folga e não podia perder mais um dia. Agradeci por tudo o que ela fez por mim e fui para casa, pois eu necessitava ficar um pouco sozinha.

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