quinta-feira, 2 de agosto de 2018

O Chapéu



Há uma teoria que já ouvi e que acredito veemente ser verdade: Os objetos carregam energias de quem os usa, de onde ficar e dos momentos.
E eu tenho este poder, de ler as leituras destes objetos e caminhar por dentro de suas memórias, que ao ver dos de fora dura apenas um segundo. Para mim, parecem ser horas algumas vezes.
E quantas histórias não conheci através destas minhas viagens temporais energéticas objectuais? Tá acabei de inventar este termo para parecer bonito, mas em suma, se eu encostar em algum objeto "novo" eu posso acessar as memórias dele. Sim, como um HD imutável mesmo.
Quando mais nova, não tinha muito controle sobre meu poder. Imagine o quão perturbador não seria encostar em algo e ter um flash de várias passagens de anos e até épocas diferentes. Mas, com os anos, aprendi a controlar e as memórias só vem se eu quiser vê-las.
Por conta do meu poder, eu trabalho como arqueóloga e também faço uns freelancers analisando objetos de museus. Imagine quanto da história do mundo não vi só de pegar nestes objetos antigos.
Porém, meu poder é um segredo só meu. Acabo misturando meus conhecimentos científicos e meus poderes para construir histórias verossímeis para os objetos que encontra e analiso, porque ninguém acreditaria em mim se citasse detalhes tão ricos como os vejo nas minhas viagens.
***
Estava trabalhando num museu na minha cidade natal, quando meu telefone toca e recebo a notícia do falecimento de uma tia. Ela já estava doente havia um tempo, mas a gente sempre tem esperanças de que a pessoa vai conseguir se curar, porém isto não ocorreu.
O enterro seria no dia seguinte e informei no trabalho que precisaria sair um pouco mais cedo por conta disso. Não ocorreu nenhum problema quanto a isso.
Depois do sepultamento, fomos comer todos da família juntos, na casa desta tia.
Conversa vai, conversa vem, a gente acabou se distraindo e não viram que meu tio, marido da falecida, se recolheu para dentro. Ou só queriam deixá-lo sozinho, sabiam que ele precisava disso.
Mas, eu senti algo me puxando. Não sabia exatamente o quê e eu também queria ir ao banheiro.
No caminho de volta, passei pelo quarto e, pela porta aberta, vi meu tio mexendo em algumas roupas do armário, tirando-as. A curiosidade me fez entrar e perguntar:
-O que está fazendo, tio?
-Separando umas roupas dela, para doar. E, queria lembrar um pouco dela também.
Sorri, E fiquei aqui com ele, enquanto ele ia puxando as peças e citava algumas ocasiões em que ela foi usada. Uma sessão de nostalgia e histórias certamente.
Eis que o resto da família notou minha falta e foi a minha procura. Logo todos se juntaram e continuamos ouvindo as histórias daquelas roupas. Todo mundo tinha uma pequena amostra do meu poder, mas através das palavras do meu tio.
Podia ver que tinha algo brilhando, leve, dentro do armário. Eu sentia que algo emanava dali, junto com aquela luz. E estava me coçando de curiosidade para descobrir o que era, não é qualquer objeto que é assim não,
E parece que ele leu meus pensamentos. Abrindo um sorriso, ele pegou e era um chapéu de praia. Com uma cor bege, parecida com palha, com alguns tons de verde misturados com a outra e uma fita fazendo um laço em cima.
-Esse chapéu... - começo meu tio - Era o favorito dela! Sempre usava quando íamos a praia, outra coisa que ela adorava.
Tinha realmente algo especial naquele objeto. Era ele que estava me atraindo já lá de fora.
-Eu posso ver, tio?
-Claro! - respondeu e entregou-me
Coloquei-o, me olhando no espelho que tinha ali por perto e permiti que as memórias dele fossem até mim. E assim, começou mais uma das longas viagens que faço dentro dessas linhas temporais.
Visitei todas as memórias deste chapéu, maioria delas envolvia realmente sol, mar e calor. Porém, especialmente duas me chamaram com mais força. A primeira, quando o chapéu foi comprado; e a última, quando foi usado pela última vez por minha tia.
Era uma feira de uma cidade litorânea, provavelmente a área turística também. E lá estava o chapéu, pendurado em meio a tantos outros, em uma tenda, como tantas que haviam ali. *
Quando faço uma viagem, eu sou apenas mera observadora do que aconteceu. O objeto simplesmente me apresenta sua história.
E ao longe vi meus tios vindo. Conversando, rindo, observando descompromissadamente as barracas da feira. Não parece ser uma memória tão distante, dez anos no máximo. Eis que passam pelos chapéus e minha tia tem vontade de comprar um.
Ela conversa com a vendedora e vai experimentando chapéus dos mais variados tipos e cores, enquanto o que me trouxe até aqui continua no seu canto, pendurado.
Minha tia não parecia gostar muito do que a dona da tenda indicava e estava desanimando de levar alguma coisa. E meu tio percebia isso.
-Tem mais alguns trás da senhora. - falou a vendedora
Ela se virou e bateu o olho direto no chapéu bege e verde. Foi amor à primeira vista, acontece muito isto com objetos. Experimentou e só conseguiu sorrir.
-É este! - disse - Quanto é?
A vendedora respondeu, eles pagaram, agradecendo e minha tia saiu já usando o chapéu na cabeça.
Depois disso passei por longas memórias desta mesma viagem a praia deles e muitas outras.
E nesse meio tempo, ela acabou adoecendo e por conta do tratamento mal podia sair de casa. E foi ai que cheguei a última memória: da última vez em que ela foi à praia.
Eles foram de carro até um praia próxima, ela já estava bem debilitada por conta do tratamento.
Era uma praia com calçadão e vários quiosques pela orla. Uma areia clara, uma calçada em preto e branco, um céu ficando alaranjado. Acabou indo na cadeira de rodas e só pode ir a areia porque foi carregada. Foram ela, o marido e os dois filhos, meus primos a propósito. Estenderam um pano grande na areia e colocaram sentada, com apoio nas costas.
Eles assistiram ao pôr-do-sol e minha tia, em momento nenhum tirou aquele chapéu. Fizeram um piquenique.
Ficaram até pouco depois de escurecer, já que pelas conversas ela devia ir logo para o hospital. Esta memória é de algumas semanas atrás e infelizmente, minha tia não pode ver o mar de novo, como ela tinha dito que queria.
-Assim que sair do hospital virei aqui e tomarei um banho de mar. - e sorriu, do jeito mais lindo que só ela tinha
E acabou ali. Retornei a realidade. Para mim, pareceram algumas horas, mas para os outras em volta era apenas um segundo.
Não consegui e uma lágrima correu do meu rosto. Ninguém entendeu nada, só meu tio que falou, em seguida:
-Leva o chapéu de presente para você.
-Não precisa. - olhei para ele - Ele tem muitas histórias. Guarde e quando quiser lembrar dela é só pegá-lo.

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