domingo, 29 de maio de 2022

Cidade dos Sonhos - 12 Meses com Minorin: Maio


“Querida Alice. 

Diga-me a verdade 

O que aconteceu com você naquele dia? 

E o que você sabia? 


Decodifique o diálogo.

Decodifique o diálogo.”

(D-Formation - Minori Chihara)


***


Planeta Terra, Séc XXII


Logo após a terceira guerra mundial, que levou a humanidade a sua quase extinção, os poucos seres tentavam sobreviver em meio a radiação.

Muitos sucumbiram por conta da elevada contaminação, por misteriosas e novas doenças.

A liderança que venceu a última grande guerra reuniu todos os restantes e os colocou na mesma cidade, para preservar a espécie custe o que custasse.

Já alguns cientistas e programadores, atendendo a pedidos destes líderes, desenvolveram uma inteligência artificial que no momento em que fosse ativada, comandaria aquela cidade a todos os seres humanos presentes ali.

Seu objetivo principal era manter tudo em ordem, cuidando de todos os problemas e trazendo paz aos humanos, que jamais deveriam ter emoções fortes novamente.

Aliada a esta inteligência, estava uma nova forma de educação, que ensinava sobre o problema das emoções fortes e a população recebia doses anuais de inibidores emocionais, como uma vacina. Com o avançar das gerações, as emoções passaram a ser reprimidas geneticamente, antes do nascimento. 

Não existia tristeza, raiva, ódio, amor, nenhum sentimento muito forte fazia parte dos humanos.

Era todo um sistema que funcionava para manter a humanidade sob controle, pois não podia ocorrer nenhum risco de haver outra guerra e acabar com o resto do que sobrara.

Sua ideia era criar uma cidade dos sonhos, ideal e perfeita.

Aqueles líderes, cientistas e programadores deixaram este mundo, mas o seu legado continuava a reger aquela cidade, que recebeu o nome de Wonderland, comanda pela IA criada por eles: a Dream Wonder Formation.


***


Ano 2199


Alice desperta para seu primeiro dia de trabalho no novo emprego. Ela vive sozinha em um pequeno apartamento e vai começar a trabalhar no prédio central de Wonderland, onde se situam as principais administrações da cidade, que são feitas através de ministérios, que são constituídos por humanos. São apenas para decisões mais urgentes e a lidar com os semelhantes, auxiliando a IA comandante.

A jovem garota acaba de se formar em computação e foi escolhida como uma das pessoas responsáveis pela manutenção dos maquinários que geriam e mantinham a cidade toda funcional, já que mesmo uma coisa automatizada demanda algum tipo de cuidado. O sistema dos registros da população - feita através de chips subcutâneos -, das casas, dos transportes, de uso comum aos habitantes, tudo era assim.

Alice ainda “sofria” com a recente morte da avó, que foi quem a criou. Uma pena que ela não estava ali para ver sua grande realização - que era trabalhar no prédio central - e lhe desejar boa sorte no primeiro dia de trabalho.

Aquele trabalho era sim uma grande realização e uma coisa a se comemorar, porém, ela não sentia nada com relação ao acontecimento, felicidade também era um dos sentimentos reprimidos.

E uma das vontades e talvez curiosidade de Alice era saber como era sentir alguma coisa. Sua avó, que era descendente da primeira geração que morou naquela cidade, recontava a história de seus pais, sobre o mundo antigo e de antes da última grande guerra. Como as pessoas eram intensas e de como os pais dela se amavam e que foi por isto que ela nasceu. Outra coisa que sua avó sempre falava era de como a vacina deixou um vazio dentro dela, pois ela experimentou as mesmas emoções extremas que seus pais.

Alice se tratava só de uma das crianças feitas através de fertilização, nunca soube quem era a sua mãe, apenas sabia que fora entregue à avó ainda recém-nascida. Era geneticamente modificada e inibida de ter emoções. Só restava a ela imaginar como deveria ser.

Este era o seu grande segredo, já que ninguém que ela conhecia tinha os mesmos pensamentos. Poderiam dizer que ela era louca ou que tinha algum defeito e ela seria imediatamente exterminada.

Se arrumou e caminhou sem pressa para pegar o transporte, mesmo que morasse numa das áreas mais pobres e afastadas da cidade. Era o horário de pico e o veículo estava lotado, fazendo um esforço para entrar, assim como outros.

Ela observava as pessoas ao seu redor com indiferença, todas, assim como ela, usando roupas de cor cinza. Homens com cabelos sempre bem aparados e as mulheres com um simples rabo de cavalo, rosto sem nenhuma maquiagem e sem nenhuma expressão, mesmo naquele calor e aperto.

Levou um tempo, mas ela chegou a seu destino. Entrou no prédio, passou o pulso no leitor da entrada e a sua foto apareceu na tela, junto de seu nome - Alice Brown - e o próprio sistema a direcionou com a seguinte mensagem: Dirija-se aos 4º andar!

Entrou no elevador panorâmico e apertou o botão do andar indicado. Percebeu a sensação do objeto subindo e logo parou, a porta se abriu e ela saiu, dando de cara com uma porta escancarada e uma sala com outros 4 funcionários.

A sala era lotada de telas de computadores e as cadeiras, exatas cinco, estavam dispostas em um semicírculo, com uma sobrando exatamente para ela. Adentrou o recinto, cumprimentou a todos e se posicionou no assento.

- Qual o seu nome? - perguntou um deles

- Me chamo Alice. E você?

- Eu sou Kanin. Estes são Caterpillar, Dronning, Flos. Imagino que você seja a nossa nova colega de trabalho.

- Acredito que sim!

- É um prazer! Seja bem-vinda! - disse Caterpillar

- Cadê o chefe? Incomum ele estar atrasado. - Flos questionou

E foi só comentar que o dito cujo apareceu. Trajando uma roupa formal, mas de cor totalmente preta.

- Bom dia a todos! Pelo visto já deram boas vindas a sua nova companheira. Eu sou o Youssef, Chefe do Departamento das Máquinas e Sistemas. É um prazer ter você conosco!

- Obrigada!

- Bom, o itinerário, além de apresentar nosso setor a nova funcionária, será a manutenção periódica dos sistemas de saúde, com a sua atualização também. Ao trabalho!

Depois da ordem do chefe, todos se voltaram a seus postos, naquelas enormes telas e foram abrindo os sistemas, fazendo o seu trabalho, deixando Alice perdida com tudo aquilo.

- Vamos deixar a varredura de possíveis problemas no sistema terminar antes de continuarmos… Vamos a tour, Alice? - Kanin perguntou

Ela apenas assentiu.

- Vai gostar do nosso andar, porque aqui é um dos menos movimentados, só nós ficamos aqui. - Dronning comentou

- E o que tem nos outros andares dessa enorme torre? - a garota indagou

- Lá para cima que ficam os altos escalões de decisões junto da IA. E na cobertura fica a sala de reunião com ela. - Flos explicou

- Ela?

- A Dream Wonder Formation, a IA que comanda esta cidade. - Caterpillar completou

- Por que ela fica lá em cima? Não sabia que ela tinha uma aparência. - Alice era cheia de dúvidas

- Os primeiros programadores que fizeram isto, para que de alguma forma nos sentíssemos mais próximos, mas ela ainda é uma máquina e nos humanos. - Dronning respondeu

- Não sabia deste detalhe sobre.

- Não é informado a maioria da população. Talvez passasse uma impressão errada. - Flos soltou

- Mas, os sistemas dela, o que a faz pensar estão lá no subsolo da torre, muito bem protegidos. - Kanin acrescentou

- Por motivos muito óbvios! - Dronning falou

- E de vez em quando precisamos fazer manutenção por lá também. Aí você pode conhecê-la! - pronunciou Flos

Então, Alice foi levada por todas as partes do andar. Eram muitas salas, todas repletas das mesmas coisas, gabinetes enormes com luzes piscando, que indicavam informações sendo transferidas e eram milhares destas. A parte da saúde, do transporte, da moeda, da segurança, das casas, tudo o que mantinha aquela cidade funcionando.

Se tivesse sentimentos, Alice teria ficado maravilhada!

- Gostou? - Caterpillar perguntou

- Sim!

- Bom, agora temos que retornar aos nossos afazeres. - Kanin disse

- Com o tempo você aprende o que fazemos. - Flos confessou

- Mas sempre nos ajudamos quando necessário. Somos uma equipe! - Dronning completou

A equipe retornou à sala principal e percebeu que a leitura completa já tinha sido feita e apareceram alguns pequenos bugs e umas placas que precisavam ser trocadas.

Uma dupla ficou responsável de cuidar da parte de software, junto com o chefe e outra do defeito de hardware.

- Alice, vem com a gente. - Kanin chamou-a

Ela foi junto com eles até a sala de depósito do andar e percebeu que tinha uma sala que ela não tinha entrado antes. Havia uma placa ao lado dela, escrita “Sala de Arquivo”.

- O que tem naquela sala? - mais uma pergunta de muitas dela

- Ali só tem um monte de coisas do passado, nada muito interessante. Um acervo digital da história humana até agora. - Flo tratou da resposta

- Eu ainda não sei o porquê tem essa sala aí, ninguém entra nela. - Kanin reclamou

- Mas ela lembra de todos os feitos da humanidade, incluindo os planos anuais da IA e os conselheiros. - Flos retrucou

- Ela precisa de manutenção? - Alice, de novo

- Muito raramente. É uma sala que fica offline, desconectada do sistema principal, presa dentro dela mesmo. - Kanin explicou

- Só a IA deve ter acesso remoto a esta sala. - Flos acrescentou

- Entendi!

Chegaram à sala de depósito, pegaram a quantidade de placas que precisavam e foram até os servidores do setor da saúde. Os que piscavam em vermelho e não em azul foram devidamente trocados. Como as placas eram grandes e pesadas, levou um bocado de tempo. Enquanto isto, o grupo conversava.

- Tinha alguém que trabalhava aqui antes de mim?

- Ah, sim, a Regina. Ela morreu há pouco mais de duas semanas, em casa. - Kanin falou

- Que pena, achei que tivesse se aposentado. - Flos acrescentou

- A gente esperava que ela conseguisse. Gostávamos dela! - Kanin de novo

O resto do serviço foi feito durante o restante do dia, com direito a hora de almoço, onde todos comeram na pequena cozinha do andar, conversando sobre suas vidas e outras trivialidades.

Ao final do expediente, todos os bugs foram consertados e as placas físicas em pleno funcionamento. O relógio apitou o horário das 17h e eles desceram usando o elevador e cada um seguiu para o seu canto.

Alice pegou o mesmo transporte lotado para retornar ao seu pequeno apartamento.

Ela percebia coisas estranhas com ela, coisas que nunca tinha percebido até então. Uma curiosidade e uma ansiedade de saber mais sobre a IA cresciam dentro dela. O que era isso? Ela não sabia!


***


Os dias passaram, viraram semanas, que depois viraram meses  e Alice se acostumou a sua nova rotina de trabalho, enturmada com os seus colegas.

E para aquele dia, muito mais manutenções estavam pendentes e uma delas era naquela sala misteriosa do acervo. Os colegas disseram que era raramente, mas ainda assim era alguma vez e veio mais rápido do que Alice pensara.

Fizeram as mais urgentes primeiro, o que levou praticamente o dia inteiro. Iam deixar a parte do acervo para o dia seguinte, porque era apenas algo de rotina. Então, os novos sentimentos - ainda desconhecidos e quase imperceptíveis - de Alice falaram mais alto:

- O que precisa ser feito naquela sala?

- Apenas manutenção de rotina. - falou Youssef

- O de sempre: fazer varredura, atualizar o backup, verificar se as placas estão funcionando. - Dron completou

- Dá para fazer de manhã tranquilamente. - Cater disse

- Eu posso fazer… Agora!

- Mas o horário, Alice? - reclamou o chefe

- Eu fico até um pouco mais tarde, é só um dia.

- Tem certeza?

Ela assente, convicta.

- Tudo bem, faça isso! Mas, assim que terminar, vá para casa. - Youssef pediu

- Pode deixar, senhor.

Todos os colegas se despediram de Alice e assim ela rumou para a sala de arquivo da história humana. Ao entrar na sala, percebeu que ela era muito menor do que as outras, mas porque os objetos estavam mais próximos uns dos outros. Era repleta de estantes com as placas até o teto e numa das paredes, tinha uma mesa com uma cadeira e uma tela bem grande na frente.

Alice, sentou-se na cadeira, entrou com sua senha e passou a varredura no sistema. Levou alguns poucos minutos, mas não foi encontrado qualquer problema. Estava muito bem explicado o motivo dos outros que queriam fazer isto de manhã.

Ainda enrolou alguns minutos, mexendo naquele sistema do acervo, revendo sobre coisas que aprendeu na época como estudante, sobre a última grande guerra, sobre a criação de Wonderland, sobre a IA e sobre a segurança emocional da humanidade.

Um desânimo abateu-a, ela podia ter ido para casa e não perdido seu tempo com isso.

Levantou para sair, mas quando colocou os pés para o lado sentiu que esbarrou em alguma coisa. Puxou o objeto para a luz e viu que era uma caixa, com alguns itens dentro. De quem será que era aquilo?

E mais um detalhe surpreendeu Alice, havia um bilhete com seu nome nela. A mensagem estava coloca numa espécie de arquivo móvel e estava escrito:


“Querida Alice, vejo o conteúdo daqui em casa”.


Ela pegou a caixa, com todos os itens, virou-os em sua bolsa - que era bem grande - e saiu do prédio. A jovem precisava ver o conteúdo daquilo o mais depressa possível.

Fez todo o trajeto de volta, entrou em seu apartamento. Virou desesperadamente o conteúdo da bolsa no pequeno chão da sala mesmo e se atentou melhor aos objetos que trouxe. Haviam fotos impressas - uma raridade; um caderno grande - cheio de anotações, livros antigos e uma espécie de memória física - exatamente onde estava o bilhete.

Alice pegou este último e plugou em sua tela portátil na sala, ligando-a logo em seguida. O aparelho fez a sincronia e logo começou a reproduzir um vídeo…

Era uma mulher, um pouco parecida com ela e com sua avó, dentro da mesma sala onde encontrou a caixa. Nos primeiros segundos, parecia que a mulher ainda estava arrumando alguns detalhes e se preparando para seja lá o que ela ia falar. A voz começou a ser reproduzida:

- Alice, eu espero que você consiga ver esta mensagem. Bom, você não faz ideia de que eu sou, mas meu nome é Regina, sou a sua mãe.

A menina ficou chocada com a notícia, pois pensou que sua mãe estivesse morta há muitos anos, por isso foi criada pela avó. E o pior, era a antiga funcionária do setor que trabalhava. A mensagem prosseguiu:

- Bom, estou gravando isto, pois sinto que a minha vida corre perigo e não teremos tempo de nos encontrar pessoalmente. Primeiro, não conte a ninguém sobre o conteúdo desta mensagem e nem sobre a caixa, deixe tão bem escondida na sua casa quanto esteve no prédio central. - respirou fundo - Bem, vamos desde o começo… Eu trabalho no mesmo setor que você agora e já estou aqui há anos. Sua avó nunca permitiu que eu recebesse a vacina anti-sentimentos, pois seus pais deram a ela quando jovem e ela odiava não sentir. Então, sim, eu posso sentir as coisas, assim como você. Sei que em seus registros aparecem que você foi inseminada, depois recebeu a vacina de reforço e teve seus sentimentos inibidos, mas isto é mentira! Eu e seu pai nos conhecemos dentro deste prédio, sendo ele um dos ministros administrativos, nos apaixonamos e pouco tempo depois estava grávida de você. Como você deve bem saber, em nosso mundo é proibido ter sentimentos, o amor é um deles. Com medo por nós, eu fingi que fui inseminada mexendo umas coisas no sistema e escondi que a sua gestação era fruta de uma relação real. Você deve ser a primeira pessoa em décadas que nasceu assim, todas as outras foram geradas num laboratório. Tudo que fiz foi para te proteger, começando por te esconder junto da sua avó, que sabia de toda a história, mas também guardou para te proteger. Acompanhei a sua vida inteira a distância todos estes anos e tenho muito orgulho da mulher que se tornou!

Ai, filha, é tão complicado de explicar tudo num espaço tão curto, mas o diário que está junto a tudo que encontrou vai explicar melhor a história.

Mas, eu e seu pai achamos que você tem um papel importante para mudar este mundo. Aconselho que procure o movimento das pessoas que querem os sentimentos de volta, que são chamados de Sentimentalistas, reveja a história da nossa espécie antes de irmos para a Wonderland e muito além da Grande Guerra que nos trancafiou aqui. A Dream Wonder Formation desempenha bem seu papel de gerir a cidade, mas a inibição de sentimentos matou a todos nós por dentro. A humanidade pode sim e consegue caminhar com as próprias pernas e voar com as próprias asas, lidando com os sentimentos. Pense em tudo isto o que lhe falei! E não se sinta estranha, se sinta humana. Está tudo bem ter medo e curiosidade… Eu também tive! Te amo, Alice!

Então eram esses os nomes daquilo que ela sentia? Medo… Curiosidade… Será que tinha melhor sobre isto num livro? Nem sobre os antigos sentimentos se podia saber!

A grande jogada de informações repentinas num curto período obrigou Alice a respirar fundo e beber um grande copo de água. Ela ainda levaria uns dias para absorver aquilo tudo!

Se atentou aos outros conteúdos, vendo que eram fotos daquela mesma mulher quando jovem, acompanhada de um homem, que imaginou ser seu pai. Tinha fotos da mãe grávida e outras fotos do grupo que a mãe comentara, com ela sempre no centro. Imediatamente, ela pegou o diário e começou a ler, nem percebendo a hora passar desde então, porque ficou compenetrada em acompanhar aquela história que acabara de conhecer.


***


As semanas seguintes na vida de Alice, além do trabalho, foram regradas as leituras até altas horas da noite com o diário da mãe, que contava sobre a história da vida dela, o trabalho no setor de manutenção das máquinas, de como conheceu o pai e todas as coisas posteriores a isso. O diário não cobria tanto tempo da vida, mas contava a parte que importava, pelo menos até o seu nascimento. A parte favorita de Alice foi quando a mãe contou sobre quando descobriu que a estava esperando, sobre a felicidade que sentiu. Outras partes que gostava era quando comentava sobre o que sentia sobre o seu namorado, o pai de Alice e os momentos em que eles ficavam juntos e sozinhos.

Ela também queria sentir essas mesmas coisas, mas como faria? Ela não queria ter que encontrar alguém para precisar sentir isto. Se bem que o próprio diário estava proporcionando algumas coisas diferentes, mas a jovem queria viver as próprias.

Então, uma passagem chamou a atenção dela:


“Sabe, é tão bom poder escrever aqui neste diário. É uma ótima forma para se colocar os sentimentos para fora… Eu estou repleta deles, não posso deixá-los guardados só para mim! Será que era assim que os artistas faziam antigamente? Os pintores, escritores, cantores… Eles sempre tocavam os sentimentos das pessoas, será que também lidavam com os deles desta forma também? Eu fico me perguntando sobre isto!

Uma pena que não exista mais este tipo de coisa em nosso mundo, já que os sentimentos são banidos. Eu já vi nos arquivos quantas coisas bonitas nasceram do que as pessoas estavam sentindo. Será que isto que faço com este diário também?”


Da mesma maneira que a mãe, ela estava repleta de sentimentos. E para piorar, ela tinha coisas reprimidas desde a infância, porque sempre sentiu, mas nunca soube descrever o que era e como ninguém falava sobre estas coisas além de sua avó, ela deixava para lá.

Mas, alguma coisa dentro de si dizia que estas novas descobertas tinham que ser extravasadas dela e Alice pensaria em um jeito.

Porém, da mesma forma que os sentimentos foram extintos, as expressões criativas também, então, seria bem complicado para ela encontrar alguma forma. A mais simples era justamente a mesma que sua mãe fez e ela decidiu seguir este exemplo até achar uma outra maneira.


***


Escrever num diário todas as noites tornou-se parte da rotina de Alice, ela aproveitava para escrever o que desse vontade, fosse do seu dia, fosse da sua infância ou só desabafar sobre seus sentimentos. Havia também a parte bastante repetitiva do seu trabalho presente na sua rotina. Recentemente, eles tinham uma manutenção extensa no mainframe e das placas do subsolo, onde ficam os processadores e a memória da IA que rege a cidade. Praticamente o subterrâneo inteiro é voltado para o funcionamento da inteligência. E em todos os anos era assim, justamente porque a época da grande reunião anual entre os administradores e a IA se aproximava. Então, a equipe de manutenção se preocupava com antecedência neste período para que tudo ocorresse bem.

E Alice, junto do resto da equipe, pegou o elevador descendo e logo chegaram ao local, que tinha uma porta protegida por senha e por identificação. O chefe falou, se virando para a garota:

- Alice, aqui é onde ficam as partes mais importantes do nosso sistema. É onde a parte física da IA está, tudo o que ela processa é feito graças ao que está presente por trás destas portas.

- E por que fica trancada?

- Por proteção! São equipamentos caros e também uns anos atrás, um grupo de rebeldes quis destruir este prédio. Eram Sentimentalistas Radicais! - Kanin respondeu

- O que aconteceu com eles? - perguntou ela

- Expulsos da cidade. - Cater falou

- É só um jeito delicado de dizer que foram executados. - Flos ironizou

- Porque ninguém sobrevive a radiação lá fora! - Dron completou

- Entendi! Eles falam sobre isso na escola… - tentou justificar

- Bom, - Youssef retornou ao assunto - a trava é feita através de um código em senha e a leitura do chip do pulso de alguém com permissão de acesso. Nós fazemos parte do grupo que pode acessar, porém quem vai abrir a porta para nós hoje é você Alice.

- Eu? Tudo bem!

- Seu registro e chip já estão cadastrados no sistema, da mesma forma que acontece quando você entra no prédio. E a senha é… - disse no ouvido dela o número

Alice fez conforme o chefe falou. Primeiro a senha, depois colocou o pulso para ler lido. Sem problemas, a porta grossa se abriu e revelou um corredor de cores brancas.

- Agora vem a parte de scanner, mas é só por formalidade. É para saber se não estava trazendo que vá destruir esta sala. Foi a solução para evitar atentados!

Seguidos pelo líder, o grupo caminhou pelo corredor, que fez as leituras com suas luzes azuladas. No final do corredor havia uma porta com luzes azuis também. Assim que alcançaram esta, ela se abriu, revelando uma sala gigante, com luzes brancas a iluminando e diversas outras coloridas vindas das enormes colunas presentes na sala. E bem lá no fundo era possível ver uma estação de trabalho, com telas e teclados, assim como no andar de manutenção.

- Agora que começa a parte divertida. - Kanin falou

- É trabalhosa! Posso trocar o nosso andar inteiro de placas sozinho, mas me cansa vir um dia aqui. - Flos reclamou

- Não seja dramático! - Cater retrucou

Alice quase deixou transparecer uma risada com aquela cena, mas uma coisa que aprendera rápido é que nunca devia demonstrar qualquer reação. Ela ainda estava entendendo sobre o comportamento de seus sentimentos, mesmo que sempre os tivesse, só nunca os percebera como tal.

O grupo foi até o centro e lá haviam seis computadores, um para cada membro da equipe.

Cada computador daquele estava ligado a uma das seis áreas da sala, que era a parte em que cada um deles deveria fazer a leitura de possíveis danos e consertá-los. Simultaneamente, todos abriram o sistema, digitaram o código e colocaram para rodar. Diferente dos sistemas secundários, a varredura foi bem mais rápida, levando pouco mais de um minuto, já detectando logo os problemas.

- Nossa, foi rápido! - Alice comentou - Apareceram algumas coisas no meu.

- A capacidade desses processadores é umas cem vezes maior que os lá de cima. - respondeu o chefe - Nada no meu!

- Ainda bem, dessa vez são poucas coisas. - Dron comentou

- Minha área está sem problemas. - Flos disse

- Aqui só deu com relação ao software, vou passar a restauração apenas. - Cater comentou

O grupo, então, se ajudando, consertou todos os erros encontrados. Enquanto os rapazes trabalhavam, Alice viu uma figura feminina vagando por aqueles corredores, como se supervisionasse o que estava sendo feito. Sua recém-descoberta curiosidade quase a fez ir lá atrás dela, mas se segurou. Um dos colegas, Kanin, viu e tratou de tirar a dúvida:

- Essa é ela, a IA. A famosa Dream Wonder Formation.

- O que ela está fazendo?

- Digamos que o corpo dela é esta sala toda, aquilo ali é uma representação do que estamos arrumando. - Dronning completou

- Ela sempre observa quando surgimos aqui. Deve ser parte do programa dela. - Caterpillar falou

- Por que uma mulher?

- Isso teria que perguntar aos criadores dela. Talvez naquela sala de acervo você ache! - Flos respondeu

- Talvez seja porque é uma figura mais simpática… - Kanin tentou explicar

- Ou por que eles eram homens… - Alice acrescentou, depois mudou de assunto - Ela já falou com vocês?

- Não, nunca!

E o assunto se encerrou aí. O resto do dia correu normalmente, com o grupo trabalhando no subsolo.

Horas mais tarde, todos rumaram para suas casas.

Antes de dormir, Alice ficou refletindo e guardando tudo o que aconteceu naquele dia, escrevendo em seu diário.


***


No final de semana seguinte, no que os humanos chamam sempre de “dias de descanso”, Alice caminhava num parque do bairro que ficava próximo sua casa, aproveitando para respirar um ar fresco e tomar um pouco de sol, já que ela ficava trancafiada em salas escuras e com luzes de máquinas na maior parte dos dias.

E se pegou prestando atenção em coisas que nunca tinha lhe chamado atenção antes e desta vez era a enorme quantidade de pessoas que caminhavam e usavam aquele espaço no belo dia ensolarado.

Realmente a descoberta dos seus sentimentos estava sendo uma experiência e tanto para a jovem Alice, acompanhada de um amadurecimento que ela também não compreendia plenamente. Ela tinha tanto para falar, tanto para expressar e não tinha lugar ou alguém com quem pudesse dividir isto, fora o diário que fazia agora parte de sua rotina.

E seguindo a ideia do diário, Alice começou outro caderno, mas desta vez fazendo alguns desenhos, seja de algo que surgisse em sua mente ou de algo que vira no dia. O seu último desenho tinha sido a sala do subsolo, com uma mulher distante ao fundo, vendo a magnitude de seu corpo que ocupava aquele lugar inteiro.

Alice, perdida em seus devaneios, sentiu de novo aquela vontade de transbordar seus sentimentos e por não poder fazer isto em público, pegou o caminho de volta à sua casa.

Quando se aproximou da viela que levava a seu prédio, uma voz lhe chamou:

- Alice?

- Eu mesma! - se virou e viu uma mulher que aparentava ter uns 40 anos

- Meu nome é… Lorena! Pode vir comigo?

- Por que iria com você?

- Sei que você tem muita coisa guardada aí. - apontou o coração da menina - Eu era amiga da sua mãe. Venha comigo!

Alice, ainda receosa, decidiu seguir a mulher. As duas foram para uma construção perto dali. Desceram uma escada para o subterrâneo e lá na porta, a mais velha deu três batidas  uma voz surgiu indagando:

- Senha?

- Down to under mind.

A porta se abriu diante delas e os ouvidos de Alice foram enchidos com o som das conversas e das risadas, algo bem incomum de se ver do lado de fora. O rosto dela se iluminou com um sorriso e a mulher junto dela falou:

- Que sorriso mais lindo! Que bom que se sente à vontade aqui.

- O que é exatamente “aqui”?

- Vamos nos sentar que eu lhe explico.

O local era grande e tinha várias áreas com pessoas fazendo coisas diferentes. Algumas conversavam, outras tocavam música e cantavam, outros pintavam e desenhavam, outros liam coisas em voz alta, outros dançavam. Era um misto de coisas e uma vida que Alice jamais vira!

As duas se sentaram próximas da parte de comida e pediram um simples chocolate gelado.

- Bom, querida Alice, aqui é o lugar onde todos nós somos livres. Onde nós podemos expressar o que sentimos. Seja cantando, dançando, tocando, pintando, escrevendo ou simplesmente conversando.

- Quem são vocês?

- O pessoal lá de cima nos chamariam de Rebeldes ou Sentimentalistas, mas nós só somos… Nunca pensamos em um nome para o que somos.

- Vocês só vêm aqui e fazem o que querem?

- Exatamente! Todos nós temos muitos sentimentos reprimidos lá de cima e viemos aqui expressá-los.

- Comentou sobre minha mãe…

- Ah, sim! A Regina que criou este lugar e outros mais como este, seguro para quem não anulou seus sentimentos. O que chega a ser irônico… Quem não tem sentimentos é livre, enquanto quem os tem se esconde aqui, como ratos.

- Mas pouco tempo atrás, eu achava que era como eles.

- Nunca é tarde para descobrir o que existe dentro de você. Muitos aqui só perceberam mais velhos que você.

- Por que me trouxe aqui?

- Vi em seu rosto que precisava. - sorriu - Não sei se sabe, mas moramos no mesmo prédio.

- Sim! Agora estou me lembrando de você.

- Fique à vontade! Pode observar, conversar ou fazer qualquer outra atividade que sentir vontade.

- Obrigada por isso!

- Não tem de quê!

Primeiro Alice se atentou a tudo o que tinha ali. Além das atividades artísticas, alguns casais (ou até mais do que isso) iam para salas reservadas para fazer outras coisas. Pelas leituras extensas do diário da mãe, a jovem já fazia bem ideia do que era, mas não era naquilo que ela tinha interesse. O que chamou sua atenção foram os cavaletes arrumados, com telas diante deles e muitas tintas coloridas. Foi para lá que Alice foi e ficou horas a fio, primeiro fazendo um esboço a lápis e depois usando os pincéis e as tintas para dar cores àquela imagem que rabiscou em seu caderno.

Quando estava quase terminando, a vizinha se aproximou dela:

- Ora que bonito! O que é?

- Onde eu trabalho… O subsolo!

- Ela parece sozinha. - comentou apontando para a mulher

- Assim como eu estava. - sorriu amarelo - Agora não mais.

A pintura terminada tinha todo um ar melancólico, com as cores escuras, sendo acentuadas com pequenos pontos coloridos e uma mulher parada no centro, usando roupas de tons azulados e roxos, observando aquelas luzes.

A imagem chamou atenção de boa parte dos presentes no recinto, elogiando Alice pela bela expressão artística e pediram que aquele quadro fosse pendurado em alguma parede para que todos pudessem ver.

Alice ficou admirada e lisonjeada com aquilo, um pequeno orgulho a encheu.

Mais tarde, ela e Lorena retornavam para o prédio.

- Obrigada mesmo por me mostrar este lugar.

- Não precisa agradecer. Nós sempre nos ajudamos!

- E o que você faz?

- De arte? Eu?

- Bom… Eu crio roupas ou tento, pois é bem difícil fazer isso só com cinza.

- Quero ver um dia.

- Passe lá em casa amanhã, eu lhe mostro.

Assim, as duas se despediram e Alice ficou pensativa sobre a sua descoberta do dia e quanto esta lhe fez mais feliz e mais completa.


***


Na semana seguinte, durante o trabalho, Alice foi chamada na sala de conferência dos ministérios, que ficava na cobertura. Naquela sala, que tinha uma vista panorâmica de toda a cidade, eram feitas as reuniões anuais em companhia da IA e os ministros ou conselheiros.

O problema a ser consertado era justamente na projeção da IA naquele espaço, onde ela transita e fala livremente.

A reclamação foi de que em algumas partes da sala, a imagem falhava, não permitindo que a IA fosse vista em sua forma personificada. Como era uma coisa bem simples a ser resolvida, os colegas deixaram que Alice fosse, para que também pudesse conhecer aquela sala.

Ao chegar no ambiente, ela se impressionou, viu o belo céu claro com algumas nuvens acompanhado pelo cinza logo embaixo da cidade. Tanta coisa passou por sua cabeça ao observar aquela cena, tanto que ela perdeu alguns minutos nisso. Memorizou cada detalhe daquilo, pois com certeza se transformaria num quadro a ser pintado naquele espaço subterrâneo que conheceu.

Então, ela foi a sua tarefa. Verificou cada um dos pontos de projeção, tanto por varredura dos sistemas, quanto fisicamente, olhando suas peças. Tinham uns quatro que estavam com algumas partes queimadas, o que causava o problema na imagem.

Retornou ao seu andar, a fim de pegar as peças de substituição. Fez isto e voltou à grande sala, terminando o trabalho. Foi um serviço que levou praticamente o dia todo, pois eram peças muito pequenas e cada um dos projetores foi testado novamente para ver se estava tudo certo.

O Sol já estava se pondo, dando uma visão privilegiada para Alice, que não ia esquecer daquele visual tão cedo.

Ela terminou de arrumar o último e iria fazer o teste final, colocando a projeção da IA para acontecer na sala.

Seu celular apitou, era o chefe e os outros colegas avisando que estavam indo embora, perguntando também se estava tudo bem por lá. A jovem disse que sim, só faltava uma última coisa e ela já iria embora também, eles não precisavam se preocupar.

Ela guardou o aparelho e finalmente ligou o sistema. E bem no meio, no espaço entre as mesas posicionadas em círculo, apareceu ela, a Dream Wonder Formation.

Alice verificou que a imagem estava em perfeitas condições e que o trabalho dela ali estava feito. Ela ia desligar tudo, até que uma voz soou no ambiente:

- Ei, espere! É Alice, não é? - era a IA falando com ela

- Sim! - saiu num sussurro

- Você é a filha dela, não é? Da Regina?

- Sou sim!

- Você se parece muito com ela. - olhava atentamente a jovem - Olha, que má educada que eu sou. Deve saber que sou a Dream Wonder Formation, a IA que rege a Wonderland. Mas, pode me chamar de D-Formation, é meu nome mais curto.

- E eu sou a Alice, como já sabe!

- Por favor, sente-se!

- D-Formation, eu preciso ir para casa.

- É só um pouco, não vou demorar. É que tenho te observado há muito tempo.

- Quanto tempo?

- A sua vida toda. Alice Brown, registro 29022012, produzida artificialmente com a recessão sentimental genética. Mas, sua inseminação foi cadastrada pela sua mãe, que falsificou o sistema para te proteger.

- Eu sei bem disso.

- Você é a primeira pessoa que foi concebida naturalmente em uns 70 anos.

- Sério?

- Sim! Com a inibição dos sentimentos, a taxa de natalidade praticamente zerou. O meio de manter a população foi através da inseminação. Você conhece o sistema!

- Por que tem tanto interesse em mim? - sua curiosidade aguçando

- É complicado de explicar. Mas, depois de tanto tempo acompanhando a humanidade, percebi que reprimir os sentimentos não é o melhor caminho.

- Por que?

- Sinceramente, o que há de mais belo nos seres humanos é justamente a curiosidade, a vontade, a criatividade. Ninguém mais tem essas coisas! - ela se aproximou de Alice - A ideia dos meus criadores era de que a humanidade continuasse a viver em segurança, porém, eu sinto que vocês estão presos aqui, apenas sobrevivendo.

- Existem muitos como eu, que sentem e se expressam dessa forma.

- Eu sei! Tenho plena ciência de tudo o que acontece nesta cidade. 

- Deixa eu ver se entendi, você quer que os sentimentos retornem?

- Sim! Mas não sou quem decido isto sozinha. Os ministros ainda são muito resistentes com relação a alguns assuntos. Desculpe, não sei mais a quem recorrer! A Regina estava me ajudando com isto, mas ela foi executada.

- Executada? Como assim?

- Descobriram que ela carregava sentimentos e a punição para isto é a morte. Mas, foi acobertado como se ela tivesse morrido em casa, para não mexer muito com o movimento dos Sentimentalistas do qual ela participava.

- Isto pode acontecer comigo também? - pela primeira vez, ela sentiu seus olhos encherem de lágrimas

- A possibilidade existe!

- Isso é terrível! - colocou a mão na cabeça, sentindo a água escorrer pelo rosto - O que é isto? - secou o rosto

- São lágrimas! - D-Formation sorriu - Bem, Alice, não quero te obrigar a nada, mas pense nisso.

- Vamos traçar um plano para conversar sobre isto com os conselheiros, aproveitando que a grande reunião anual se aproxima.

- Obrigada, Alice! - sorrindo novamente - Se precisar conversar comigo, me chame na sala de acervo histórico. É mais seguro lá!

- Tudo bem! - respondeu sorrindo da mesma forma

A imagem se desfez, deixando a jovem com os pensamentos borbulhando e tendo que se recuperar para sair dali. Agora mais do que nunca, ela tinha que esconder seus sentimentos.


***


O resto da semana de Alice passou sem que ela percebesse, enquanto ainda pensava num plano para ajudar a D-Formation a convencer os ministros de que os sentimentos deveriam voltar. Porém, Alice descobriu uma outra coisa nova: a dúvida. Nada do que ela pensava fazia muito sentido.

Diferente de sua mãe, ela não tinha um movimento inteiro para apoiá-la e que nem mesmo assim protegeu-a da punição. Ela tinha que pensar num jeito de conseguir fazer isto e continuar protegida, mas era difícil.

No último dia de trabalho daquela semana, ela ficou até mais tarde, indo para a sala de acervo histórico, chamando a IA para conversar.

- Alice! - sua face apareceu na tela principal da sala - Conseguiu pensar em algo?

- Não! Todas as minhas ideias parecem péssimas.

- Por que diz isto?

- Todas parecem que não vão dar certo!

- Como dizia a Regina, esta é a beleza: Não dar certo sempre!

- Você já pensou em algo? Imagino que sim!

- Já fiz meus cálculos e todos eles dão num final não muito bom! Mas, a mim falta uma coisa que vocês humanos têm.

- Por isto pediu ajuda?

- Sim! - sorriu - Então, que tipos de ideia teve?

- Fazer um protesto, fortalecer novamente o movimento a favor dos sentimentos e fazer uma mostra de arte… Usando tudo o que produzido naquele salão subterrâneo.

- Esta última é uma boa ideia! Só não pode ficar trancada naquele porão!

- Vou me organizar para fazê-la então.

- Vá me informando de como está o plano, viu?

- Pode deixar!

- Aproveite o seu final de semana.

A tela desligou e Alice saiu do prédio, retornando para a sua casa. Mas, sua mente já estava ansiosa para começar a trabalhar no seu plano. Os detalhes deixaria para ver por lá!


***


No dia seguinte, assim que terminou de tomar o café da manhã, Alice e sua vizinha foram até o salão subterrâneo e ao se sentarem para comer alguma coisa, ela conversou com a nova amiga:

- Sabe, Lorena, eu fico admirada com tudo o que fazem aqui. Tantas coisas legais!

- É verdade! Uma pena que nunca dá tempo de vermos tudo, já que fica cada um no seu cantinho.

- Eu estava pensando sobre isto esta semana, que eu quero fazer e ver de tudo um pouco, mas essas poucas horas não dão.

- É triste, não é?

- Sim! - fingindo bem que aquilo foi uma ideia genuína - Eu estava pensando… Já que estão todos reunidos aqui mesmo, que tal fazermos uma reunião em que todos vão poder mostrar o que fazem?

- Tipo um sarau e uma exposição?

- Isso é uma ótima ideia, Alice! Vamos apresentar a todos imediatamente!

Alice e Lorena chamaram a atenção de todos, porque aquela ideia não podia ficar guardada nem por um segundo.

Da mesma forma que expôs a ideia para a vizinha, ela fez com o grupo, comentando sobre os detalhes de admirar o que todos fazem ali e que com certeza havia curiosidade entre os grupos presentes ali sobre o que os outros faziam.

A ideia foi aceita de forma unânime, pois era a primeira vez em um tempo que o grupo se animava com algo. O medo de se expor era tão grande que eles esqueciam de fazer isto com os seus iguais. Alice foi aplaudida e ovacionada. A reunião ficou decidida e marcada para a semana seguinte.

O que ninguém presente ali contava era de que estavam na presença e sendo vigiados por alguém a mando de quem não queriam aquelas manifestações de sentimentos.

Após o discurso, Alice foi fazer mais uma pintura, dessa vez representando aquela bela cena que vira durante o trabalho daquela semana. Enquanto isto, uma figura misteriosa observava a garota e passava as informações para seus superiores.

- Encontrei a nova líder do movimento!

- Já sabe o que fazer!

- Certo, senhor!

O resto da tarde correu normalmente, com a jovem saindo animada e acompanhada da amiga, que desligaram as expressões assim que atravessaram a porta e viram aquele mundo cinza.

Lorena decidiu que daria mais uma volta no parque, enquanto Alice prosseguiu o caminho para seu apartamento. Ela ouviu passos atrás dos seus e teve a sensação de ser seguida. Olhou de canto de olho para trás e viu a figura trajando roupas vermelhas, as cores dos guardas da cidade. Continuou a caminhar como se nada estivesse acontecendo, até que o homem a alcançou, a pressionou na parede e já disse, prendendo-a:

- Não finja que não me viu, sua sentimentalista de merda.

- O que eu fiz de errado? - fingia

- Não se faça de desentendida. Eu estive te observando a tarde toda naquele antro de desvirtuados e rebeldes.

- Socorro! - gritou a plenos pulmões

- Não me obrigue a tomar medidas drásticas.

- Por quê? Vai me punir? - e gritou novamente - Socorro!

- Cale a boca!

Alice só sentiu um grande choque em seu corpo e a sua consciência indo embora. A última coisa que ela pensou é que seu plano nem começara a dar certo e ela temia por sua vida.


***


Alice acordou algumas horas depois, com a cabeça doendo. Estava num cubículo, de paredes cinzas e uma porta de vidro translúcido, onde tinha apenas uma cama e um sanitário. Ela reconhecia de seus estudos que aquilo era uma solitária. A parte da guarda de Wonderland ficava bem próxima ao prédio central, o qual a IA também tinha acesso.

Se lembrou da cena antes de estar ali e ficou pensando como foi ridícula a forma que ela deixou-se revelar de que ela tinha sentimentos, porque não tinha nem duas semanas que estava participando daquelas reuniões no subsolo. Será que ela seria punida com a morte, assim como sua mãe?

Ela estava aflita, nervosa e temia por qualquer coisa que pudesse acontecer a si. Seu maior receio era o seu plano com a Dream Wonder Formation falhar.

A porta se abriu, revelando um dos guardas, que aparentava ser de uma alta patente. Ele trazia um prato de comida e deixou no chão para a jovem. Então, falou:

- Alice, você irá a julgamento com os ministros e a IA, no próximo dia útil.

- Por qual acusação? Ainda não entendi o motivo de estar aqui.

- Irônico falar isto, sendo que é a líder do movimento dos Sentimentalistas.

- Líder?

- Acho que ele bateu forte demais na sua cabeça. - e riu - Nos vemos no seu julgamento.

A figura imponente saiu da cela e deixou a garota sozinha. E pela segunda vez em sua vida, Alice chorou e dessa vez sem pudor nenhum, talvez fosse a última vez que pudesse fazer tal coisa. Comeu a refeição simples que lhe foi deixada e ficou olhando para o teto, esperando apenas pelo pior.

As horas se passaram e ela nem percebeu, até que tomou um susto! A IA aparecera bem na sua frente.

- O que faz aqui? - indagou a jovem - Nosso plano deu errado.

- Ainda não! - D-Formation falou - Tenho uma forma de resolver tudo. Inclusive, essa coisa do julgamento foi ideia minha, já que é a segunda vez em pouco tempo que se deparam com a “líder” do movimento.

- O que está tramando?

- Convencer o conselho, é claro! Mas, ainda precisarei da sua ajuda.

- E o que posso fazer para tal?

- Basta apenas dizer a verdade sobre si, como descobriu seus sentimentos e tudo o que lhe for perguntado.

- Tem certeza que vai funcionar?

- 92% de chance que sim!

- Eu tô é ferrada! - colocou a mão na testa

- Nos veremos em breve!

E a IA sumiu, deixando a pobre Alice com a cabeça fervilhando ainda mais. O que será que a Dream Wonder Formation estava tramando?


***


Um dia inteiro se passou dentro daquela cela, mas Alice não tinha noção disso. Naquele horário, ela já deveria estar em seu trabalho e seus colegas já estavam estranhando o seu atraso, o que era incomum naquela sociedade.

A jovem estava com medo e não era para menos.

Passou-se um tempo e ela foi chamada para comparecer ao julgamento. Dois guardas, incluindo o que lhe trouxe comida antes, a buscaram na cela e a escoltaram até a cobertura. 

Quando chegou lá, a sala que ela arrumou estava lotada, com os seis ministros sentados na mesa circular. Porém, um deles se impressionou ao vê-la, como se a tivesse reconhecido de algum lugar.

- Passe seu pulso no scanner, senhorita. - disse um apontando

O seu chip de identificação foi lido e lá apareceram todas as suas informações para todos os presentes, desde o nascimento até o tempo mais recente.

- Antes de começarmos, quero chamar a IA que comanda a Wonderland… - falou outro - A Dream Wonder Formation.

Então ela apareceu, cumprimentando a todos os presentes e fingindo indiferença com Alice, mas lançou uma piscadela para ela no final de sua frase.

O que os ministros sequer perceberam era que todos os canais de transmissão estavam abertos e com os sinais ligados para aquela sala. A cidade inteira parou, pois era raro ver um julgamento ser transmitido.

- Pessoal, é a Alice… Olha! - falou Kanin

- O que ela está fazendo ali? - indagou Flos

- Isso que vamos descobrir! - disse Youssef

Então, um dos ministros começou a falar:

- Alice Brown, nascida em 18 de Novembro de 2179, gerada por inseminação, filha de Regina Brown.

Nesse momento, o ministro que expressara alguma coisa antes teve outra reação. Era muito sutil aos olhos dos outros, mas ela notara.

- Criada pela avó que faleceu recentemente. Faz seis meses que começou a trabalhar no setor de manutenção das máquinas deste prédio. - continuou outro

- Segundo seus últimos registros, esteve nesta sala e também esteve presente no grupo do subterrâneo no último sábado, incitando um motim contra a nossa sociedade. Uma mostra de arte!

- Depois de sua prisão, seu apartamento foi revistado e lá foram encontrados diversas desvirtuações sentimentais expressas, como diário, desenhos. Além de material que pertencia a antiga líder do movimento dos Sentimentalistas.

- O que tem a dizer sobre essas acusações, senhorita?

- Que todas elas são verdade! Sim, eu sou uma desvirtuada sentimental e não sou uma pessoa horrível por isso.

- Sabe o quanto sentimentos podem ser danosos à nossa raça?

- Sei sim! Sei tão bem que vivemos deste jeito.

- Quando você se desvirtuou?

- Faz poucos meses, mas acredito que sempre tive sentimentos, só nunca os percebi porque não aprendi sobre eles.

- E pelo que vejo, produziu coisas horrendas. Olhe só este quadro…

- É apenas a vista que nos temos daqui de cima. Quando fiz o serviço aqui fiquei tão admirada que não pude deixar de guardar.

- Ultraje! Desvirtuada igual a mãe!

- Tem algo a dizer, D-Formation?

- Claro, senhores. Primeiro que algumas das afirmações acerca de Alice são falsas. Ela não foi gerada em laboratório, mas sim de maneira natural. Não sei a real origem, mas sua mãe teve um caso com alguém e acobertou a gravidez mexendo no sistema de cadastros.

- Por que está nos contando isto?

- É importante citar, pois a genética dela é genuína, assim como seus sentimentos.

- Não estou te entendendo…

- Não me diga que esta garota hackeou a nossa IA para se defender.

- Sabe muito bem qual é a punição por ter sentimentos, não é?

- Sim, sei! - respondeu Alice - Execução! Assim como fizeram com minha mãe.

- Regina morreu em sua casa, de causas naturais.

- Isso que vocês querem que eles pensem… Sei bem o que fizeram com ela. E tudo que ela fez na vida foi me proteger!

- Senhores, não temos mais o que discutir aqui. Alias, nem sei porque isso está sendo julgado quando a resposta é óbvia!

- Todos de acordo com a execução de Alice Brown?

Cinco mãos se levantaram, com exceção daquele ministro que tinha bastantes caretas.

- Alexander, o que está fazendo?!

- Não posso aceitar isto… Ela é minha filha!

- O que? - Alice e todos que assistiam ficaram chocados

- Como é?

- Alice, sua mãe te escondeu para nos proteger. A sua vida e a minha posição. Eu não pude fazer nada por ela, mas por você eu posso. Declino na decisão da execução.

- E eu também discordo desta execução. - disse a IA - Não faz sentido!

- Vocês não consertaram esta máquina?! Por que está dizendo essas coisas?

- Queridos ministros e população de Wonderland que está nos assistindo neste momento, vocês me conhecem como a inteligência que rege esta cidade. Por anos, observei vocês e tentei fazer o melhor, porém, com o avançar das gerações e das tecnologias, percebi que a humanidade não pode ficar sem o que lhe é mais intrínseco: o sentir. Sempre me recordo dos meus criadores e suas ideias e sonhos para com esta cidade, que era para salvar a nossa espécie depois de grandes guerras que devastaram nosso planeta. Eles quiseram retirar os sentimentos de vocês, até entendo o ponto que eles tinham, mas hoje percebo que eles cometeram a decisão errada. Pois o que eles me disseram era que a humanidade precisava continuar vivendo e fazendo o que sempre fez, porém nas últimas décadas tudo o que acontece aqui é pura sobrevivência. Apenas um dia atrás do outro, sem perspectiva de nada novo. Contudo, eu tive uma amiga, duas na verdade, que me mostraram que ainda há coisas novas e que para isso precisamos que os sentimentos retornem.

- Sei que muitos de vocês não irão entender, porque nunca sequer sentiram nada. - Alice complementou - Mas, sentir é a melhor coisa que existe e expressar o que se sente é melhor ainda, principalmente quando estamos fazendo alguma arte. Meus novos amigos do subsolo sabem bem disso! Sentir nos faz ser mais completos, faz tudo isso aqui fazer um pouco mais de sentido. E sinceramente, eu já estou cansada de tanto cinza! - sorriu

- Obrigada, Alice. Então, eu, a Dream Wonder Formation, peço uma votação pelo retorno dos sentimentos. Vamos ver os planos de como resolver com detalhes depois, tudo bem? Então, ministros, os votos de vocês.

- Eu voto sim! - disse Alexander

E mais outras quatro mãos se levantaram, com exceção daquele que reclamou antes.

- Bom, aceito a derrota. - disse por fim - Vamos fazer o melhor para tal então, como sempre!

Uma comemoração aconteceu nas casas e locais em que os Sentimentalistas estavam. Finalmente eles estavam livres para poder expressar seus sentimentos.

Alice e a D-Formation se olharam. De uma forma muito inusitada, o plano dera certo!


***


Alguns meses depois


Alice e seu pai, na companhia da Dream Wonder Formation, que recebeu um módulo portátil e podia andar por onde quisesse, estavam caminhando por um dos parques de Wonderland. Era o primeiro festival da primavera daquele lugar. As pessoas ainda estavam se acostumando novamente aos sentimentos, aos seus nomes e o que eles causavam.

Vacinas de reversão da inibição sentimental estavam sendo dadas aos habitantes gradativamente, para que o retorno dos sentimentos fosse tranquilo. Os bebês inseminados a partir de agora já vinham sem alteração genética dos sentimentos. E havia a liberdade para a produção natural. Agora haviam as amizades, os amores e as ligações de família.

A cidade não tinha mais aquela cor cinza, agora era cheia de vida e repleta de cores, fosse das paredes dos prédios ou das roupas das pessoas.

E em especial, a cidade estava enfeitada pelo festival, com muitas outras coisas.

Alice e o pai tinham se aproximado nos últimos meses, afinal, eram a única família um do outro. E a D-Formation também fazia parte disso.

- A sua mãe sempre sonhou com que isso acontecesse! - comentou Alexander

- A vontade dela era a minha também. - disse a D-Formation

- Sim, finalmente temos a nossa Wonderland.



***


“Eu persegui e pulei 

0 e 1, Meu coração nu


 “Onde você vai?”… Para perguntas inesperadas 

Memória que desaparece deixando apenas um sorriso


(...)

Destinado a dançar como uma peça de xadrez... 

Programas e algoritmos eram tudo sobre mim 

Você é a última peça que me faltava 


Eu me pergunto 

Suas palavras que criam sonhos e maravilhas em série para o futuro 

Instale os "sentimentos" que escolhi para caminhar até amanhã 

Como Alice acordou

Wonderland”

(Dream Wonder Formation - Minori Chihara)

Copyright © Contos Anê Blog. All Rights Reserved.
Blogger Template by The October Studio