quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Uma guerreira inesperada - 12 Meses com Minorin: Agosto


 

“É uma sinfonia latejante, tornando meus pensamentos e desejos uma chama 

A trêmula batida do coração! 

(...)

Grave-o nesta era e mude para sempre 

Você é o único tolo com um coração mais livre do que qualquer outra pessoa! 

O impulso vermelho que eu guardava no coração, o que se refletia naqueles olhos que procuravam”


(FOOL THE WORLD - Minori Chihara)


***


Ainda recordo da primeira vez que vi os homens da minha família treinando soldados. Devia ter uns cinco anos e estava em casa junto de minha mãe e minhas irmãs mais velhas. Ouvi alguns sons vindo do pátio e a minha curiosidade infantil me levou a ir lá olhar. Sai escondida de mais uma das aulas de caligrafia, que seria seguida por uma de etiqueta, sem minha mãe e nem a criada que nos acompanhava perceberem. Com minhas pequenas perninhas, corri pelo chão de madeira da nossa enorme casa, chegando até o lugar de onde vinha o barulho. E o que eu vi foi uma coisa que iluminou os meus olhos!

Vi filas e mais filas organizadas de soldados, todos segurando armas e fazendo os golpes de maneira sincronizada, entoando gritos complementares.

E lá na frente do local estavam meu pai, um dos tios, alguns primos (mais velhos e mais novos) e o meu irmão mais velho. Todos observando e arrumando o que fosse necessário dentro daquele pequeno batalhão presente no campo aberto.

Fiquei parada assistindo a cena, maravilhada! Até que percebi o pescoço do meu pai se esticando e nossos olhares se cruzaram. Meu irmão Kenji também me viu e me lançou um olhar de “você não devia ter vindo para cá”.

Papai saiu de seu posto e se aproximou de mim, enquanto percebi passos apressados vibrando pela madeira. Era a minha mãe!

- Yura! - com raiva - Por que fugiu da sua lição?!

- O que essa garota está fazendo aqui, Nanako?! - meu pai esbravejou - Sabe que é estritamente proibido que as mulheres até vejam o treinamento.

- Desculpe! - mamãe disse cabisbaixa - Ela saiu e nós não percebemos.

- Trate de prestar mais atenção em suas filhas.

- São suas filhas também! - ela retrucou

O que se seguiu foi um tapa que meu pai deu em minha mãe, como uma reprimenda. Ela me tirou dali arrastada e é claro que aquele tapa me foi devolvido mais tarde.


***


Desde aquele dia, me interessei muito pelo que acabei vendo. Por um tempo, continuei escapulindo em alguns horários para ver o treinamento, ficando desta vez escondida para quem ninguém me visse e me encontrasse.

A minha família, Botan, representada pelas peônias que floreiam nossas primaveras, é uma família de origem nobre, repleta de feitos dentro do histórico de guerras do império Ogushahara. Os melhores guerreiros vieram desta família, então, por este motivo, o treinamento de recrutas é de total responsabilidade nossa. Ah, quer dizer, responsabilidade dos homens do clã! A atividade é totalmente proibida para mulheres e eu aprendi isso da pior forma, justamente naquele primeiro dia.

Eu tinha pouca idade, mas já entendia algumas coisas. E com o passar dos anos passei a entender muitas mais… Como sobre o papel de uma mulher no império. Desde que me lembro, recebo aulas sobre etiqueta, caligrafia, dança, bordado e muitas outras coisas. E todas elas para mim - tirando a caligrafia, pois isso me permitia ler na biblioteca - eram bastante cansativas. Por que eu devia aprender tudo aquilo? De que adiantava se eu estava fadada a viver enclausurada num casarão e cuidar apenas dos filhos e da gestão do lugar? Os livros já tinham me mostrado que havia muito mais coisas para se conhecer e aprender!

Então, alguns temas acabava estudando sem que meus pais soubessem… Como ervas medicinais, estratégias de guerra e lutas.

Em minhas pequenas fugas para o pátio da mansão, aconteciam longas sessões de observação. Eu me atentava a tudo o que os soldados faziam e tentava replicar sozinha em meu quarto, usando um leque para simular uma espada de vez em quando.

Mas, sabia que tudo aquilo não passaria de um enorme segredo meu e que levaria para a vida toda e nunca poderia plenamente praticar essas coisas. 


***


Muitos anos se passaram, eu já não era mais criança e sim uma jovem próxima da idade de se casar, o que claramente não queria. Meu pai faleceu neste meio tempo, durante uma batalha, deixando - para o alívio dela - minha mãe viúva. Kenji, meu irmão mais velho e único homem, se tornou o patriarca da família, gerindo a mansão e assumindo os treinos de novos recrutas, com auxílio dos meus primos, já que meus tios todos não podem mais. Ele também se casou e a sua esposa Reina vive aqui. É um casamento recente, então eles ainda não geraram filhos.

Todas as minhas irmãs já haviam se casado, morando agora nas residências da sua nova família. Uma se casou com outro nobre, outra com um general, outra com um dos príncipes para sucessão, todas com casamentos muito vantajosos para a família e que aumentavam as chances para mim. O sonho de minha mãe era me casar com alguém de outro reino - talvez um imperador ou príncipe - trazendo assim paz para nosso império de alguma forma, já que não haviam princesas em nossas terras.

Então, a pressão sobre mim aumentou ainda mais, tinha mais aulas de tudo o que precisava aprender e eu simplesmente não aguentava mais. E sabia bem que dali para frente, era só para trás, pois nunca viveria os meus próprios sonhos e muito menos realizaria as minhas vontades. Afinal, eu era mulher, o que mais poderia querer além de um ótimo casamento e filhos saudáveis?

Estava devaneando sobre isto, sentada no jardim, enquanto lia uma história, onde a personagem lutava pelo que queria. Não conseguia não me enxergar ali, pensando que talvez devesse agir como essa personagem e lutar pelo meu futuro. Mas, isso seria lutar contra um sistema inteiro de tradições milenares e contra todos que achavam que ele fazia sentido.

Talvez seja por isso, desde que mamãe anunciou que eu havia florescido e que minha mão estava disponível, que me sentia tão triste!

Olhei para cima, o céu claro e limpo da primavera, ornamentado com as peônias da estação enchendo as árvores em todo o seu esplendor. Respiro fundo, tentando não ficar com isso na cabeça por tanto tempo.

Sinto passos vindo em minhas costas, me viro para ver quem é e é Reina, que veio dar uma volta no jardim - ou só perturbar o meu juízo. Ela falou comigo:

- Yura, lendo novamente? - ela riu, desdenhando - Devia parar de sonhar e se preocupar com coisas mais realistas.

- Já sei! - fiz careta - Como um marido.

- Se comportando desta forma não encontrará. - pôs as mãos nas costas - Eu tenho pena da minha sogra que ainda precisa encaminhar uma traste que nem você.

- Não abra esta boca para falar da minha mãe e muito menos de mim. - retruquei

- Eu sou a senhora desta casa e posso dizer o que quiser sobre quem quiser, entendeu?

Sim, ao se casar com Kenji, ela assumiu o posto de “dona” da casa, as funções que era de mamãe passaram a ser dela.

- Espero que você e meu irmão tenham filhos logo, assim para de acabar com o meu dia.

- É o que eu pretendo, assim coloco você mais lá trás na linha sucessão desta família. - ela sorriu, debochando - Inclusive, seu irmão, o senhor desta casa, retornará hoje à noite. Amanhã começa mais um ano de treinamento de soldados.

Ela ia continuar, mas eu interrompi:

- Já sei! Quer que eu esteja apresentável para o jantar.

- Não só isso, um pretendente se hospedará conosco também. - falou animada

Fiz mais uma careta e ela gargalhou, falando logo depois:

- Acho melhor se comportar para que ele goste de você.


***


Escureceu e com ajuda de uma criada - e com opinião incisiva de mamãe - coloquei o meu melhor kimono para o retorno do meu irmão e a visita ilustre do pretendente. E claro que ela fez questão de ter uma conversa longa comigo sobre o quanto aquele momento era importante:

- Yura, minha filha, é muito importante que a recepção ao rapaz seja boa. Temos que manter o legado do clã e você tem que cumprir o seu dever como mulher. Faça de tudo para que ele se encante por você e peça a sua mão o mais depressa possível.

- Eu sei, mamãe. Só que nós temos uma guerra iminente, será mesmo que algum homem vai querer contrair matrimônio?

- Estamos num ótimo período de paz. Não sei onde escuta essas coisas. - ela retrucou

- As pessoas na cidade comentam. Kenji também comentou sobre nas cartas, por isso a urgência em começar um treinamento novo tão depressa.

- Não diga besteiras! - olhou-me de cima a baixo - Está perfeita! Pena que tem a boca tão grande…

- Mãe! - briguei

- Nenhum homem gosta de mulher que se mete demais nos assuntos.

- Talvez casar não seja para mim então.

- Não diga isso! Só falta você dentre meus filhos. - sorriu, mexendo em meus cabelos - Vai trazer mais orgulho e honra a nossa família.

- Você sempre esperou muito de mim, eu não sou um décimo das minhas irmãs.

- Só que tem o seu valor. De todos, você é a que lê e escreve melhor.

- E não pode usar isso para nada.

- É apenas um detalhe!

- Senhora, seu filho e o convidado chegaram! - apareceu outra criada entrando no recinto

- Obrigada! - sorridente

Saímos das duas do meu quarto, eu sendo arrastada por uma mãe saltitante e animada de mandar a última filha para o martírio do casamento.

A reunião era no salão principal da casa, onde também seria servido o jantar. Quando chegamos, já estavam meu irmão acompanhado da esposa e a visita conversando.

- Ora, ora, se não é a pequena Yura. - disse meu irmão caloroso

- Ah, essa é a famosa? - disse o convidado

- Olá! - tentei fazer cara de paisagem, pois eu queria saber o que meu irmão andava falando de mim - É um prazer! - fiz a reverência

- Meu nome é Aikaibara Jun, sou general da província mais ao norte, mas eu e Kenji nos conhecemos numa das muitas batalhas.

- Ah, sim, imagino. - sorri amarelo - Já disseram meu nome, mas sou Botan Yura.

- Bom, ele vai nos auxiliar com o treinamento dos recrutas que começa amanhã.

- Que ótimo! - mamãe com os olhinhos brilhando - Ficará bastante tempo conosco.

- É verdade que tem uma guerra se aproximando, Senhor Jun? - soltei no ar, olhando para o meu irmão

- Onde ouviu isto? - o convidado parecia surpreso

- Na cidade, mas dá para sentir que o clima está tenso em todos os lugares, ainda mais com essa urgência em produzir soldados.

- Olha, Senhorita Yura, estamos a um fio de uma guerra estourar. O império vizinho de Zeyunao está nos provocando de propósito, imagino que o imperador Shinobu vai querer atacá-lo em breve. - ele me respondeu - E a minha fronteira ao norte é a mais vulnerável.

- Então, os soldados que serão treinados irão para lá?

- Exatamente!

- Vamos parar de falar sobre estratégias de guerra e vamos jantar. - minha mãe interrompeu - Podem servir criadas!

As empregadas fizeram conforme mamãe ordenou e logo nós estávamos sentados nas mesas baixas, formando um círculo na sala. Com meu irmão e a esposa na parte mais alta, eu e minha mãe de um lado e nosso convidado do outro.

E claro, o foco daquela reunião era tentar me arranjar um marido.

- Soube que está procurando uma esposa, Senhor Jun.

- Sim, Sra Nanako, agora sou o senhor do meu clã e busco uma bela jovem para viver ao meu lado.

- Minha filha Yura é uma moça bastante prendada. Bem instruída, educada, sabe cantar, dançar, bordar, é recatada. Com certeza será uma ótima senhora para a sua casa. 

Ai, eu vou vomitar se essa conversa continuar. Odeio ser oferecida como uma mercadoria, igual quando vendem frango no mercado da cidade.

- Não busco uma criada para fazer tarefas e muito menos uma concubina para apenas me entreter. Prefiro eu mesmo conhecer a sua filha e descobrir quais atributos ela tem.

- Vejo que o senhor é bastante exigente, Sr. Jun. - disse Reina

- Minha família é tão importante quanto a de vocês. Não será qualquer mulher que será minha esposa.

Aposto que a minha cunhada pensou: Não vai ser a Yura então!

E a minha mãe deve ter pensado: O que mais preciso ensinar a Yura para conquistar este rapaz?

Em resumo: Estou sem qualquer escapatória e terei que fazer de novo o que todos querem, deixando meus desejos para trás. E talvez, desta vez, será para sempre.

- Terão bastante tempo para se conhecerem. - Kenji acrescentou - Afinal, amanhã chegam os recrutas.

E o assunto da conversa foi trocado, dessa vez com os dois amigos contando sobre como foram os últimos passos do exército de nosso império. Não paramos de rir um só minuto, pois a maioria das histórias eram bastante engraçadas.

Isso acabou me lembrando quando meu pai se reunia para jantar conosco, contando sobre suas experiências de guerra e eu ficava encantada com a forma como ele contava. Mas, com meus tios, quando eles faziam jantares assim, era uma algazarra. Eles gritavam e riam alto, lembrando de suas próprias anedotas. Eu cheguei a espionar algumas vezes e me diverti ouvindo escondida atrás da porta.

Logo, o jantar acabou e todos se recolheram para dormir, pois o dia seguinte prometia ser bastante agitado.


***


Acordei com os primeiros raios de sol que me atingiram o rosto. Pedi à criada que trouxesse meu café da manhã. Era ainda bem cedo, então dava tempo para ver o começo do treinamento. Comi rapidamente, amarrei meus cabelos num coque simples, só para não precisar pentear, coloquei um dos meus kimonos de dia a dia favoritos, vermelho com arranjos brancos e rumei para o pátio do casarão. E foi bem a tempo!

Usando o meu lugarzinho especial para observar, pude ver meu irmão, seu amigo e alguns primos alinhados em uma fileira lado a lado uns do outros. Os recrutas já estavam em forma e ouviam meu irmão discursar:

- Bom dia, futuros guerreiros do império. E sejam bem-vindos ao melhor treinamento que poderão receber para se tornarem os melhores soldados que o imperador Shinobu já viu. Já devem ter ouvido falar da fama deste clã e não é para menos. Então, estejam preparados para tudo o que faremos. Nós vamos exigir muito de vocês! Aqui não é lugar para fraquejar e desistir.

- Logo, estarão junto comigo, defendendo a província do norte. - Jun falou

- Então, recrutas, armas em punho e fiquem em posição! - um dos primos gritou

- E imitem nossos movimentos! - acrescentou outro

E assim começou o treinamento. Os soldados arrumados em longas fileiras, repetindo os passos dos instrutores, seguidos por sons de seu esforço. Meu irmão e o amigo, depois de um tempo, começaram a passear por entre as fileiras, arrumando as posturas e outros pequenos erros dos recrutas na execução.

Logo o exercício acabou e eles organizaram um pequeno torneio. Os guerreiros em treinamento batalhariam entre si para saber quem era o melhor. Aquilo geralmente era só para dar uma animada neles, oferecendo um pouco incentivo, pois o que viria à frente seria bem duro.

Eu até queria continuar assistindo, porém senti passos pesados vibrando na madeira. Tentei me encolher no meu cantinho, mas ela me achou, geralmente me achava.

- Yura! - mamãe esbravejou - Eu já falei que não deve olhar o treinamento, é estritamente proibido!

O som foi tão alto, que todos aqueles homens no pátio pararam para ver de onde vinha. A cena que eles viram foi ridícula, na minha humilde opinião. Mamãe me puxou pelo pulso, me arrastando para longe dali, dizendo ainda no mesmo tom:

- Você tem aula de bordado agora. A sua professora está esperando! Inclusive, que estado deplorável que está!

Já ouvi gargalhadas vindas de trás de mim, de todos aqueles futuros soldados. Afinal, quem eu pensava que era? Uma mulher, espionando o treinamento deles, como se eu pudesse fazer alguma coisa daquilo.

Só que então, algo interrompeu tanto eles quanto a pessoa que me puxava. Kenji falou se aproximando:

- Mãe! Deixe a Yura assistir…

- Sabe que é proibido, meu filho.

- Proibido quando era com meu pai e com os meus tios. Agora eu sou o senhor e o general do treinamento. Eu permito que a minha irmã assista ao nosso treinamento.

- Não é algo adequado para uma moça. - soltou ela entredentes

Eu olhava a conversa como se não me envolvesse e também percebia os olhares reprovadores de todos os outros logo atrás de nós. Esse dia já podia acabar!

- Vamos conversar sobre isto mais tarde. - meu irmão disse por fim

Então, Kenji se afastou e eu continuei sendo puxada por minha mãe para a minha bendita aula de bordado, que era a única habilidade que ainda precisava aprimorar.

E de presente por ter aprontado, ganhei uma semana de castigo, sem poder sair do meu quarto, a não ser para jantar, para minhas aulas e sair com o meu pretendente.

Só me restava ficar com as caras enfiadas nos pergaminhos e aproveitar bastante o tempo livre para tentar replicar algumas das manobras que os recrutas aprenderam.


***


Mais tarde, depois do jantar, esperando que todo mundo começasse a se recolher, coloquei a minha roupa de dormir, que era mais leve e peguei o meu leque, ia repetir alguns dos passos ensinados hoje.

Fingindo que meu leque era uma katana, puxo da minha cintura e começo a realizar as posturas. Para cima, para baixo, para direita, para esquerda. Cortes curtos e longos. Vou repetindo diversas vezes, para fixar melhor.

Estava tão distraída que nem notei que a porta havia sido aberta, até que uma voz disse meu nome, me fazendo saltar um passo para trás. Era meu irmão, que logo perguntou:

- O que está fazendo?

- Eu só… - eu gelei - Estava repetindo o que fizeram hoje.

- Por isso você sempre parava para olhar? Para fazer no quarto a noite escondida?

- Desculpa, eu não queria atrapalhar. - soltei - Achei que não tivessem me visto.

- Yura, você vestiu um kimono vermelho, dava para te ver. Aliás, eu sempre a via nos treinos dos soldados quando era com nosso pai, lembra?

- Sim! - resolvi mudar de assunto - O que veio falar comigo?

- Bom, eu conversei com a mamãe sobre deixar você ver os treinos.

- E o que ela disse? - ansiosa

- Ela retirou seu castigo depois que expliquei tudo e também eu disse que é algo que você sempre faz. E te deixar continuar fazendo escondida pode pegar mal com o potencial pretendente. Se bem que você não para de fazer coisas escondida né?

- Em minha defesa, você invadiu o meu quarto!

- Eu sou o senhor da casa, eu posso entrar aqui.

- Abusado! - fiz bico - Era só isso?

- A princípio sim, mas você me pegou de surpresa.

- Como é? - seguido de outra careta

- Tem outro leque aí?

- Na penteadeira.

Ele foi lá e pegou o outro leque, o que uso para passeios.

- O que vai fazer?

Sem falar nada, meu irmão, avançou para cima de mim, empunhando o instrumento como uma arma. Instintivamente, puxei meu leque para me defender. Parecia com um exercício que os soldados fariam mais adiante, com as técnicas de defesa. Meu irmão continuou a sequência de golpes e eu segurei cada um deles, sem dificuldades.

Por fim, ele me devolveu o leque e soltou:

- Interessante! Conseguiu aparar todos os golpes, sua postura de execução é muito boa, para não dizer excelente. - coçou o queixo - Quem te ensinou?

- Ninguém! - engoli seco - Aprendi sozinha, olhando…

- Entendi! - ele sorriu - Quer saber: vou te oferecer uma coisa. Bom, eu vou treinar você nas artes da família. Luta desarmada, espadas, defesa, tudo.

- Como é, Kenji?

- Não foi isso o que você sempre quis, Yura?

- Sim! Mas, não sei se posso aceitar.

- Deve aceitar, por favor. Eu detesto ver quando perde o brilho no olhar quando faz algo que não gosta. - sorriu - Seus olhos brilharam só com essa possibilidade.

- Eu quero! - dei breve pulinhos - Como faremos sem a mamãe e a sua esposa saberem?

- Deixe isso comigo! Vamos treinar ou após o jantar ou bem cedo, antes do treinamento dos recrutas. Tudo bem para você?

- Claro! - dei um abraço nele - Obrigada, Kenji!

- Agora vai dormir. - me apertou em seus braços

Depois desejou-me boa noite e saiu, me deixando toda alegre com o início do meu treinamento.


***


No dia seguinte, lá estava eu, com uma visão privilegiada e permitida do treino dos soldados. Sentei-me na ponta da varanda da casa, com meus pés descalços pendendo para o lado de fora. Uma criada me trouxe um pouco de chá e eu fiquei assistindo ao treinamento enquanto me deliciava com o meu chá preto, apenas o meu favorito.

Porém, a minha alegria durou pouco, pois logo se sentou ao meu lado a minha cunhada, fazendo questão de não me deixar felizinha achando que seria a única a ver o treinamento. Quis ser venenosa e logo perguntei:

- Seu marido permitiu sua presença aqui, Reina? Sabe que é estritamente proibido para as mulheres.

- Acha que eu queria estar aqui? Prefiro ficar fazendo o meu bordado. Foi a minha sogra quem me mandou aqui, para eu ficar de olho em você.

- Ora, e o que faria de diferente sem sua incrível supervisão?

- Não sei, você é tão fora da casinha, Yura. Eu não duvido de nada! - e gargalhou - Achou que ia treinar junto deles? - apontou para o grupo bastante concentrado

- Me contento apenas em observar.

- Você realmente é esquisita! O que isso vai te agregar como futura esposa?

- E quem disse que quero ser esposa?!

- Não diga isso perto do seu pretendente. - tapou a minha boca depressa - Ele pode ouvir.

- Que ouça! - dei de ombros

E o que Reina temia aconteceu, Jun veio se aproximando de nós, usando uma roupa mais leve do que quando o conhecemos, por conta da temperatura estar aumentando e também pelo esforço que o exercício pedia. Com as mangas amarradas para trás com auxílio de uma faixa branca.

- Srta. Yura, que prazer ter a sua presença aqui. - ele me sorriu - Kenji disse que nos faria companhia hoje.

- Ah, sim, desde criança sempre quis ver o treino dos soldados.

- Você o faz escondida desde a infância… Ele me contou das suas histórias. Inclusive, eu lhe vi ontem observando atrás da parede.

- Ah bem, eu não tenho como me defender disso, Sr. Jun.

- Eu queria saber o que você acha de tão interessante nisto. - sentou-se ao meu lado, aguardando a minha resposta - Nunca vi outra moça com este interesse.

A minha cunhada permanecia calada, observando toda a conversa, esperando a parte que ia colocar tudo a perder.

- Na infância era só uma curiosidade, porque era proibido. Também achava engraçado todos tão arrumados e soltando esses gritos. Mas, conforme cresci e fui lendo alguns livros sobre guerras, romances e lutas, via seus grandes feitos e queria saber mais sobre como suas habilidades eram desenvolvidas. Afinal, são vocês que mantêm boa parte do Império Ogushahara funcionando, para não dizer todo.

Reina já balançava a cabeça em reprovação, com certeza aquela seria a conversa que me afastaria de mais um potencial casamento. E sinceramente, eu não me importava!

- Eu nunca li muitas coisas além de estratégias de guerra. Quero conhecer algumas de suas leituras para aumentar meu conhecimento em outras áreas.

- Claro! Tem bastantes coisas envolvendo ervas medicinais, chá e cada um tem propriedades diferentes para ajudar nosso corpo. Algumas delas podem ajudar no campo de batalha! - sorri

- Se tiver alguma que dê na região norte, melhor ainda. Bom, preciso ir! Mais tarde conversamos!

Apenas assenti e ele se afastou retornando à companhia de meu irmão e meus primos. Eu estava achando tudo aquilo muito estranho. Nunca ninguém que me cortejou perguntou sobre meus interesses e quis saber mais do que a minha saúde durante a vida e minhas aptidões femininas. Era só uma fachada ou ele era diferente mesmo?

Obviamente, a minha cunhada resolveu opinar, sem que eu pedisse.

- Essa foi a conversa mais esquisita que já ouvi. Livros, ervas, estratégia de guerra…

- Foi a conversa mais interessante que já tive com um homem, sem ser o meu irmão, desde sempre! - confessei

- Espero que ele fique com você pela sua beleza e não pelo seu cérebro, porque este já está podre.

- Ai, fique quieta, por favor! - debochei

- Não mande a senhora da casa ficar calada. - cruzou os braços e simplesmente saiu da varanda

- Ué, não ia ficar me supervisionando, Reina? - retruquei

- Você já é bem grandinha e sabe se cuidar, Yura… Só não apronte!

- Não o farei!

Passei o resto do dia assistindo ao longo treinamento e não me senti entediada em nenhuma parte dele. Só queria ver como aplicaria aquilo com meu irmão mais tarde.


***


Logo após o jantar, todos se recolheram para dormir, deixando a casa num total escuro e num total silêncio. Eu já tinha me preparado, pois assim que acabou o treinamento mais cedo, Kenji me avisou que bateria à minha porta e nós iríamos até o jardim, usando as árvores como cobertura, para iniciar.

Eu já tinha me arrumado com uma roupa que ele deixou emprestada, de quando ele era apenas um jovem em treinamento. O tamanho era praticamente perfeito para mim, o que era bastante engraçado. Amarrei os meus cabelos para que eles não me atrapalhassem.

Estava sentada na minha cama, já aflita e ansiosa, pois era o começo de algo que eu tanto queria desde que me lembrava.

Três batidas na porta me tiraram do devaneio. Corri para atender e a minha surpresa foi que era o Jun parado ali, trajando roupas leves como as minhas.

- Boa noite, Srta. Yura. Seu irmão pediu para vir lhe chamar.

- Vai treinar conosco, Sr. Jun? - acho que era meio óbvio que ele sabia

- Sim! Serei como um colega de apoio, conforme Kenji definiu.

- Então vamos! - saí e tranquei o meu quarto

Caminhávamos em direção ao local e claro que o engraçadinho quis puxar assunto.

- Imagine se a Sra. Nanako ou Sra. Reina nos pegam caminhando sozinhos a esta hora da noite? - e ri

- Elas o obrigariam a se casar comigo!

- Isso não seria tão ruim. - colocou as mãos atrás do corpo, meio sem graça

Ele realmente tem algum interesse por mim? Isso é sério?

- O senhor nem me conhece direito. - soltei

- Eu já conheço mais sobre a senhorita do que imagina. Só de ouvir as histórias que te envolviam.

- Ah, que ótimo! Meu histórico me condena! - bufei irônica - Talvez seja por isso que nenhum pretendente quis nada comigo. Mas, a minha mãe quer porque quer me ver casada.

- Casamento é algo tão horrível assim para você? Dá para perceber que não quer de jeito nenhum.

- Pelo que vi, dos casamentos da minha mãe e irmãs, não é a melhor coisa do mundo. Na verdade, todas as minhas irmãs são muito talentosas e podiam cada uma seguir na área das artes, porém estão presas em casamentos pelo resto da vida.

- E você? Qual o seu talento?

- Eu não tenho nenhum. Sou a filha caçula, fiquei com as sobras e a falta de habilidades.

- Isso que veremos hoje.

Kenji já estava nos esperando no centro do jardim e acenou assim que nós aparecemos. Ele parecia bastante animado, assim como eu. E tratou de explicar os motivos do Jun estar ali.

- Bom, Yura, não lhe falei, mas o nosso convidado é bastante habilidoso também. Quando comentei com ele sobre seu treinamento, ele se ofereceu para ajudar.

- Ajudar? Ou para cortejar comigo? - cruzei os braços

- As duas coisas. - ele foi sincero - Prefiro conhecê-la sem toda formalidade e sem a sua mãe nos observando.

- Tudo bem, é justo! - olhei para meu irmão - Por onde começaremos? Vamos seguir o mesmo treino dos soldados?

- Em parte sim! Mas, primeiro, eu preciso saber se você aguenta carregar o peso de uma katana. - então pegou algo que estava apoiado em uma das árvores de peônia - Peguem!

Ele jogou duas espadas de treino para o alto. Elas eram feitas de madeira e são as mesmas usadas pelos soldados para não se ferirem durante os combates.

Meu companheiro pegou sem muitas dificuldades. Na verdade, colocou em uma mão só e girou como se fosse um bastão. Já eu senti que aquilo era como uma massa enorme de ferro e mal conseguia segurar com as duas mãos. Mas, não reclamei do peso!

- Vamos repetir aquilo do quarto ontem, Yura. - meu irmão comentou - Jun, ataque-a!

E num piscar de olhos, o convidado avançou para cima de mim, usando a segunda mão na katana para aumentar ainda mais a sua força nos golpes. Eu estava toda atrapalhada só para manter o exemplar de madeira erguido à frente de meu corpo, então foi bastante complicado aparar os golpes do outro.

Os troncos esculpidos batiam entre si, fazendo um estalo quase oco e a cada um deste, eu ficava mais agachada e mais indefesa. E por fim, acabei caída no chão, com o meu bastão de treino sendo arremessado para o outro lado.

- Para uma primeira vez, até que não foi ruim. - ele estendeu a mão, me ajudando a levantar - Precisa se acostumar com o peso primeiro, é assim mesmo. - disse pegando a minha espada do chão e me devolvendo

- Primeiro, vamos exercitar alguns golpes. Para que se acostume a usar a arma. - Kenji ordenou

- Até porque um leque é muito mais leve que isto aqui. - soltei animada

- Você praticava com um leque? - Jun se impressionou - Realmente você…

- O quê? Era o que dava!

- Quando ela pegar o jeito, você vai ver como ela tem uma postura excelente. - meu irmão disse olhando para ele - Em posição!

Meu irmão pegou uma espada de madeira também e ficamos repetindo o que ele fazia.

Assim, o tempo foi passando e nós nem percebemos.

Senti o suor escorrendo pela minha testa por conta do esforço, mesmo que breve. Senti o ar entrando e saindo de meus pulmões, coordenadas junto com meus movimentos. Mantinha os pés firmes em cada passo, assim como as mãos e meus olhos sempre atentos para o que estava fazendo, estava bastante concentrada. Por dentro, no entanto, eu estava pulando de alegria, pois era finalmente o que eu queria fazer e nem parecia ser verdade ainda.

Em alguns momentos, Kenji veio e corrigiu algumas coisas, mostrando também formas de executar mais fáceis.

Treinamos por mais algum tempo e então, para que não fossemos dormir tão tarde, voltamos cada um para nossos aposentos.

Eu até demorei a pegar no sono, pois eu estava eufórica!


***



Alguns dias após, depois de um treino matinal, Jun me chamou para darmos um passeio no mercado da cidade, aproveitando que era um dia de folga para os recrutas.

Estava tudo lotado, onde boa parte dos habitantes estavam fazendo as compras e abastecendo as suas casas para as próximas semanas. E aquele era o melhor lugar para escutar sobre as novidades da província, incluindo sobre os atritos políticos.

Minha mãe não gostava muito que eu fosse, mas sempre inventava algum motivo para acompanhar os criados e até os ajudava com as tarefas e de quebra ouvia uma coisa ou outra ali.

Porém, desta vez era um passeio e cortejo com o meu potencial pretendente, então mamãe não reclamou nem um pouquinho.

Andávamos lado a lado um do outro, em meio as duas enormes fileiras de vendedores com as tendas lotadas e gritando a plenos pulmões suas grandes ofertas. Era uma vida que eu gostava de ver de vez em quando, mas não era o melhor lugar para cortejar uma moça.

- Sr. Jun, por que quis vir aqui?

- Primeiro para ficar um pouco longe até dos olhos do seu irmão, Srta. Yura. Já percebeu que ele sempre está perto de nós?

- É verdade! - sorri - Sempre tem alguém da família junto vigiando. Mas não ache que vou me comportar mal longe deles. - e ri

- Uma coisa que você não é: Mal educada. Admiro muito que fala o que pensa, não tem vergonha disso.

- Minha mãe e minha cunhada veem isso como um problema. Ainda mais agora que eu estou assistindo ao treinamento.

- São barreiras que o Kenji está quebrando, ela vai entender um dia.

- Se eu tivesse filhos, não queria que eles sofressem como eu.

- Filhos, Srta. Yura? - ele gargalhou - Não quer nem pensar em casamento, como vai pensar em filhos?

- A probabilidade é bem alta, ou melhor, não terei como fugir disso. É meu destino! - falei irônica - Bom, o que quero dizer é que não ia querer que eles ficassem cumprindo tantas expectativas e atendendo a necessidades exclusivamente minhas.

- É assim que se sente com relação a sua família e sua mãe?

- Sim! Sempre, como mulher ainda, tenho funções específicas para desempenhar.

- E eu, como homem, também tenho as minhas. Todos nós temos, Srta. Yura!

- Sei bem disso! Só me sinto bastante pressionada com isso, ainda mais depois que minhas irmãs se casaram.

Bom, acho que seria neste momento em que ele estava desistindo completamente de mim. Uma mulher que não quer realizar suas responsabilidades e seus deveres.

A conversa ia continuar, porém fomos surpreendidos com uma algazarra vinda de trás e tomamos um susto, pois era uma carroça com um cavalo descontrolado. Todos desviavam no caminho e ele vinha derrubando o que não saísse da frente. E nós dois estávamos bem no meio da passagem de destruição dele. Íamos ser atropelados! Mas, Jun, rapidamente me puxou pelo pulso e me jogou para um dos cantos, indo junto comigo e me protegendo com seu corpo também, nos tirando da direção.

Foi tudo tão rápido que eu só percebi que tínhamos ficado próximos demais quando eu estava encostada na parede de madeira de uma das casas da região e ele bem perto de mim, praticamente me pressionando, respirando ofegante e quente em cima das minhas vestes. Tão perto que eu podia sentir o batimento acelerado de seu coração.

- Está bem, Srta. Yura? - ele olhou para mim

- Sim! - respondi sem jeito - Deu foi um susto!

- Você ficou parada que nem uma tola! Eu tenho que te levar inteira para casa. - ele sorriu

- Desculpe! - falei por fim

Depois disso, nosso passeio prosseguiu normalmente - se é que isso é possível - e nós chegamos inteiros com todas as partes no lugar!


***


E daquela mesma forma se repetiu nos dias que se seguiram. De vez em quando à noite, em outras bem cedo de manhã, antes do treino dos soldados. Estes que eu também continuava acompanhando, continuando a minha observação.

Meu objetivo era apenas aprender e não ser a melhor mulher guerreira do reino. Eu só queria saber fazer as mesmas coisas que meus parentes homens podiam.

E em ambos, além de Kenji presente, também estava o Jun - que também é meu pretendente. Eu treinava diretamente com ele em alguns exercícios e durante o dia, eu pegava ele me lançando alguns olhares. Contudo, apesar desse contato diário e algumas poucas conversas informais, ele estava me dando bastante espaço e nunca nem tocou no assunto de casamento comigo.

Só que eu confesso que eu também me pegava olhando para ele. Bem ou mal, ele era um rapaz interessante! E como era meu colega de treinamento, passei a ter algum apreço por ele… Era uma boa companhia!

Por outro lado, eu ainda tinha as minhas aulas diárias de tudo o que precisava para ser uma boa mulher e esposa. Dessa parte já tinha aprendido e entendido, porém minha mãe insistia que ainda não era boa o bastante. Porque na cabeça dela eu ainda não tinha conseguido impressionar o nosso convidado, que era um excelente partido - palavras dela - e eu tinha que conquistá-lo custe o que custasse.

Os dias se tornaram semanas, que se tornaram meses. Os meus treinos e o dos soldados avançavam e pelo menos o segundo parecia estar se aproximando do fim, assim como a primavera. 

Minha mãe e minha cunhada disseram em alto e bom som que eu estava gostando dele e que parecia ser uma coisa recíproca e era questão de tempo para que ele pedisse a minha mão.

E no reino, nada eram flores, a guerra parecia ainda mais próxima do que antes. Então, logo aqueles soldados, meu irmão e meu pretendente teriam que entrar no campo de batalha e defender o nosso território. Enfrentariam muitas batalhas e só esperava que todos voltassem vivos!



***


Acordei uma manhã bem cedo, pois o nosso horário era de antes dos soldados. Coloquei minha roupa, amarrei meu cabelo e saí em direção ao pátio. Esperava encontrar com Kenji e o Jun, mas apenas o segundo estava lá, o que era um pouco estranho.

- Bom dia, Yura! - ele já era mais íntimo, então me chamava pelo nome

- Bom dia, Jun! Onde está meu irmão?

- Ele vem apenas mais tarde.

- Aconteceu alguma coisa? - preocupada de ser realmente algo sério

- Não, é que queria conversar a sós com você.

- Sobre? - meu coração acelerou

- Não finja que não sabe.

- É só para ter certeza! - sorri, sem graça

- Eu conversei com o Kenji e a Sra. Nanako sobre a possibilidade de nos casarmos… Eles disseram que aceitavam!

Ah, que ótimo! De um jeito estranho eu conquistei-o e minha mãe devia estar toda orgulhosa disso. Ele me interrompeu do meu breve devaneio:

- Mas, primeiro tem essa guerra chegando e eu não quero me casar para deixar uma esposa preocupada em casa. E também preciso saber se a noiva aceita se casar comigo…

Eu fiquei sem reação, como eu ia responder aquilo? Como eu devia responder? Sim ou não? Não sei? Eu tô surtando!

- Yura? - ele me tirou dos meus pensamentos - Tá tudo bem?

- Tá, é só que…

- Eu te assustei com tudo isso? - perguntou sorrindo

- Não, é… Eu realmente não sei como te responder, Jun. - olhei para baixo

- Bem que seu irmão disse que você ia fazer isto. - ele riu - Você é realmente única, Yura!

- Única?!

- Sim! Esse jeito excêntrico seu acabou me contagiando e conquistando.

Ah, não! Ele não vai falar aquelas palavras, vai? Tratei logo de interromper!

- Por favor, não diga!

- E você sabe o que eu ia dizer? - cruzou os braços

- Eu imagino! Só tenho medo do que devo fazer depois de ouvir estas palavras.

- Dever? O casamento te assusta tanto assim mesmo? - disse ele, tocando em minha mão

- É complicado de explicar! - eu permiti seu toque, entrelaçando meus dedos nos dele - O que vi de casamentos na minha vida não foram como nos meus livros. Eu sei como a vida pode ser cruel! - desabafei

- Yura, eu não quero te obrigar a nada. - fez olhar para ele - Eu te amo! E se não quiser ficar comigo, posso lidar com isso.

- Eu falei que não era para dizer, Jun. - deixei que uma lágrima escorresse do meu rosto

- Precisava dizer antes de sair para a guerra. Eu não me perdoaria se não o fizesse!

Esse pensamento tinha me ocorrido uns dias antes, de que talvez estivesse apaixonada por Akaibara Jun. Ele já era uma presença marcante nos meus dias e nos divertíamos e conversamos. Tínhamos coisas em comum e ele em momento nenhum criticou o que queria fazer, apenas incentivou, coisa que só acontecera com meu irmão antes dele.

Só que agora, com aquela conversa surpresa, ele tinha quebrado todas as barreiras que eu mesma impus.

Então, nós olhamos um nos olhos do outro e com todo o meu histórico de leitora de histórias românticas, sabia bem onde aquilo ia dar. E aconteceu! Ele me tomou em seus braços e nos beijamos. Era o primeiro beijo da minha vida e se me contassem que seria assim, não acreditaria.

Nossos lábios se tocaram de uma forma leve, trazendo em seguida alguns breves movimentos. Eu não fazia a mínima ideia do que fazer, só tentei imitar o que conhecia nos livros. E enquanto nossos corpos estavam próximos, pude sentir o coração dele batendo no peito, assim como o meu.

Não levou muito para nos separarmos, ambos trazendo um sorriso bobo no rosto. Continuamos abraçados enquanto conversávamos:

- E como faremos? - perguntei, com medo - Será que alguém nos viu?

- Estamos há dias de uma grande batalha, não quero lhe prometer nada, Yura.

- Você não precisa prometer, Jun. - soltei, boba apaixonada

- Vai me esperar retornar da guerra?

- Eu posso esperar! - sorri

- Assim para mim já está bom!


***


Naquele dia, todos os soldados terminaram o seu treinamento, recebendo todo o equipamento necessário para exercer as suas funções.

Realmente, agora a guerra era real e eles iam sair para lutar. O que me deixou aflita não só pelo Kenji, mas por Jun.

Mais tarde, na hora do jantar, todos estavam reunidos no salão, o mesmo de sempre. Eu já sabia, mas as outras mulheres da casa ainda não: eles partiriam já no dia seguinte.

Quem começou o assunto foi a minha mãe, ironicamente:

- Filho, eu soube que o treinamento dos soldados se encerrou hoje.

- Sim, mãe, produzimos novos e excelentes recrutas para o império. Inclusive, tenho que contar uma coisa.

- Não sem antes eu contar a novidade primeiro. - minha cunhada se impôs - Estou gerando o novo herdeiro desta casa.

- Ah, que maravilhoso, Reina! - mamãe comemorou

- Meu amor! - meu irmão sorriu, segurando suas mãos - Não poderia estar mais feliz!

- Espero que tenhamos outra boa notícia agora também. - a matriarca jogou no ar

- Que notícia? - me fiz de desentendida

- De um casamento! - Reina completou

- Bom, - Jun começou - eu e a Yura conversamos hoje e…

- Não me diga que você não aceitou? - mamãe se revoltou, quase se jogando em cima de mim

- Não pedi a mão dela em casamento. - ele tratou de se explicar - Não faria isto com a guerra!

- Guerra?! - minha cunhada e minha mãe juntas

- Exatamente! - Kenji respondeu - Amanhã mesmo partiremos para o acampamento.

- Quando o Shinobu declarou a guerra? E contra quem?

- Tem poucos dias e contra o império Zeyunao. - falei

- Como sabe disso, Yura?

- As pessoas na cidade falaram, as notícias chegaram! Acabou o tempo de paz infelizmente! - completei

E o clima no jantar se tornou praticamente outro, ficou um tom melancólico e de despedida. Era sempre assim, ainda mais quando papai e meus tios saíam para mais uma de suas tantas batalhas. Nunca sabíamos se ele voltaria são e salvo, se é que voltaria. Na maioria das vezes, ele retornou, para a alegria dos filhos e da esposa dedicada. Porém, uns anos antes, ele não regressou e só recebemos a notícia de que ele havia morrido em batalha.

Eu só não queria que a história se repetisse num período tão breve de tempo, ainda mais agora que a Reina estava esperando o seu filho.

Só que de uma coisa todas nós sabíamos: Os próximos meses seriam difíceis!


***


Na manhã seguinte, nos preparamos para a despedida do meu irmão e do seu amigo. Eles vestiram suas armaduras, pegaram suas armas, já que o trajeto até o campo de batalha seria longo e o caminho já se encontrava perigoso. Alguns criados ajudaram a colocar a sela nos cavalos, deixando-os prontos para partir.

Fomos até o portão e nós três - eu, minha mãe e minha cunhada - ficamos uma ao lado da outra, para vê-los desaparecer na estrada lá embaixo.

- Se cuidem vocês dois! - minha mãe disse, protetora

- Faremos isso, mãe. Não se preocupe! - Kenji sorriu, tentando tranquilizá-la

Em seguida, meu irmão se despediu da esposa, dando-lhe um beijo na testa e colocando a mão sob sua barriga. Ela já estava com o rosto molhado com tantas lágrimas.

- Vou tentar voltar a tempo de vê-lo nascer!

- Só quero que retorne são e salvo!

Depois, ele se dirigiu a mim. Não tinha notado antes, mas ele trazia algo em suas mãos, me entregou o objeto e eu vi que era uma wakizashi - uma versão menor da katana. Era um presente para mim?

- Para que isso, irmão? - tirei a espada da bainha e vi como a lâmina reluzia

- É um presente por ter completado seu treinamento. Mandei o ferreiro da cidade confeccionar.

- Obrigada! Os entalhes são lindos.

- São o símbolo da nossa família. - ele pôs a mão no meu ombro - Proteja eles três, a você e a esta casa na minha ausência.

- Pode deixar! - falei convicta

Senti o olhar da minha mãe sob mim, ela não sabia do treinamento até aquele momento. Ou seja, Kenji deixou que eu resolvesse isto com ela. Ótimo!

Ele subiu no cavalo e ficou aguardando que Jun também se despedisse. Ele fez reverências a minha mãe e minha cunhada, agradecendo a hospitalidade. Até que ele chegou para falar comigo e eu senti meu coração acelerar.

- Eu também tenho um presente para você! - disse tocando em minha mão, me entregando algo - Uma pulseira que pertencia à minha falecida mãe.

A pulseira tinha contas em forma de bolas, todas escuras, algumas delas com um desenho de uma flor avermelhada. Era muito bonita!

- Obrigada! - sorri

- Prometo voltar vivo e o mais breve que puder!

- Não me prometa nada! - respondi - Só fique vivo!

- Pode deixar, Yura!

Então, ele também montou em seu cavalo e ambos saíram a galope em direção ao acampamento dos soldados do império. Agora eles iriam lutar para defender o nosso território.


***


Muitos meses se passaram…

Veio o outono, com as árvores perdendo suas folhas. Veio o inverno, trazendo a neve bem branquinha junto.

De vez em quando recebíamos notícias de Kenji e Jun, comentando sobre os avanços da guerra. Nosso império ganhara a maioria das batalhas e estava pressionando bem o inimigo, era questão de tempo para que ele se rendesse.

Na verdade, esta guerra começou pois o imperador inimigo invadiu o nosso império diversas vezes nos últimos anos, trazendo baixas de soldados e muitas mortes de civis. Então, estes acontecimento acumulados que foram o estopim de tudo.

Meus dias depois da partida dos dois se tornaram bem parecidos com antes. Continuava com as minhas aulas, pois minha mãe não acreditava que seria pedida em casamento pelo meu pretendente, que ele só falou aquilo no último jantar pois não gostara de mim. Mesmo com o presente, ela não acreditava, pois parecia uma coisa barata.

Eu ainda continuava praticando uns golpes durante o dia, usando o jardim do casarão, usando o presente que meu irmão me dera. Minha mãe ficou revoltada quando contei que não tinha só observado o treinamento, mas o feito também. Ela afirmou que eu quebrei uma tradição da família e se outros parentes soubessem, ela não saberia como se comportar, talvez eu fosse até expulsa da família. Tentei não pensar muito nisso!

A gravidez da minha cunhada seguiu muito bem. Ela ficou com uma barriga bem grande e logo o bebê nasceria, já na próxima primavera. E foi o que aconteceu!

Quando as primeiras árvores de peônia voltaram a florescer, ela entrou em trabalho de parto e foi bastante difícil. Tentamos por toda região uma parteira para ajudar, mas com a guerra elas foram para outros lugares, já que também eram curandeiras.

Usando os conhecimentos que adquiri em livros, a experiência da minha mãe e com auxílio dos criados, conseguimos trazer o bebê ao mundo em segurança. Era uma linda menina, que minha cunhada chamou de Ichihime.

E claro que eu pensava sempre no Jun, nos poucos momentos em que estivemos juntos, no treinamento, nas conversas, no passeio na cidade, na nossa conversa no pátio antes dele ir embora, na despedida! Eu me sentia uma tola apaixonada por estar esperando por ele. Só que não tinha nada que eu pudesse fazer, era esperar a guerra acabar. E por sorte, a guerra sequer chegara perto da nossa região, então estávamos seguras. Ou era isso que eu pensava…


***


Uma noite, logo após o jantar, todos se recolheram para dormir. O casarão ficara num longo silêncio. Eu estava lendo mais uma história, como sempre, parada em frente a janela redonda do meu quarto - e que dava para o jardim de peônias.

Não sei quantas horas haviam se passado, mas devia já ser de madrugada, a notar pelo som das cigarras. Porém, um estrondo chamou a minha atenção. Em tempos de guerra, poderia ser qualquer coisa, inclusive uma invasão à nossa casa.

Sai de meu quarto e caminhei a passos silenciosos a fim de conseguir ver alguma coisa. Ao alcançar um local que me deu visão da entrada, eu vi um pequeno exército, talvez uns dez homens, trajando armaduras e empunhando suas armas, dentre elas espadas, alabardas e lanças. Três deles estavam em cima de cavalos, sendo o do meio mais imponente e com a armadura mais reluzente, especialmente sob a luz do luar.

Eu não sei o que eles queriam, mas com certeza não era uma boa coisa.

Retornei ao meu quarto, troquei minhas roupas o mais rápido possível para algo que me deixasse escondida durante a noite. Eram roupas parecidas com a dos ninjas, que eu comprei no mercado da cidade pouco depois que meu irmão foi para a guerra. Peguei a minha wakizashi e tratei de tentar deixar o máximo de pessoas da casa em alerta.

Tínhamos criados homens e mulheres, mas eles não sabiam empunhar nenhuma espada, no máximo uma enxada ou um bastão.

Primeiro, fui ao local dos criados, todos eles já estavam acordados por causa do barulho.

Assim que me viram com aquelas roupas tomaram um susto.

- Srta Yura, é você! - soltou uma aliviada

- O que foi este barulho?

- Estão invadindo a mansão. Não sei o que eles querem, mas continuem escondidos aqui. Preciso que peguem o que for necessário para se defender. Fiquem alertas!

- E as nossas senhoras? - perguntou a criada pessoal de mamãe

- Vou avisá-las agora e trazê-las para cá. Melhor com todos juntos!

- E a senhorita? - indagou um criado

- Eu preciso proteger a casa!

A casa dos criados ficava mais aos fundos, próximo ao meu quarto, enquanto o quarto da minha mãe e da minha cunhada ficavam mais à frente. Eu não tinha muito tempo, então corri!

Senti passos pesados já na madeira da casa, eles estavam perto. Mas, eu demorei demais. O grupo entrou rapidamente e já tinha encontrado a minha mãe e a minha cunhada. Eu ouvi os gritos das duas e o choro da Ichihime. Eu subi no telhado para ter uma visão melhor de qual estratégia faria para salvá-las. Elas foram arrastadas para o jardim, sob protestos. E lá estavam os três homens imponentes de antes. Foram jogadas no chão, até que minha mãe esbravejou para o invasor, sentado no meio:

- Quem é o senhor e o que quer nesta casa?

- Eu vim atrás de uma pessoa!

- E pelo visto não é nenhuma de vocês. - falou o que estava a direita

- Conhecem a Yura? - soltou o da esquerda

O que eles queriam comigo?! Como eles sabiam meu nome?

- É uma de minhas filhas, por quê?

- Onde ela está, senhora?

- No quarto dela, eu imagino! - falou minha cunhada, já indicando o caminho a eles

Dois foram para lá para verificar. Minha mãe lançou um olhar para Reina, reprovando sua atitude. Eu disse que ela não gostava de mim!

- Eu devo matá-las também, então tratarei de explicar. Meu irmãozinho se apaixonou por essa tal de Yura e como quero irritá-lo, nada mais justo do que fazer esta surpresinha.

Irmão dele? Ele não está falando do Jun?

As duas ficaram estarrecidas, sem palavras saindo da boca. Aproveitei a pausa na conversa para ir em direção ao meu quarto e dar fim naqueles dois e foi o que fiz.

Retornei ao telhado para observar o resto, que seria a demora dos outros dois.

- Cadê aqueles trastes? Vá lá ver! - aprontou para um

Ele foi e voltou logo, gaguejando uma frase.

- Estão mortos, senhor!

- Como é? - ele gritou - Quem os matou nessa casa só com mulheres e criados? Era para ser uma coisa fácil.

- A minha filha tem habilidades que você desconhece, senhor. - minha mãe soltou

- Se dividam e procurem por todo este casarão, ela tem que estar em algum lugar.

Assim eles o fizeram e eu fui atrás deles. Era a melhor coisa que podia acontecer para mim. Fui explorando a casa, com passos calados e derrubando um por um, sem muita resistência, até porque eles sequer me viam. Os três principais se mantiveram no jardim esperando, mantendo a custódia sobre minha mãe e cunhada.

Terminei o serviço e resolvi acabar com o suspense.

- Soube que tem alguém procurando por mim!

- Filha! - minha mãe sorriu

- Onde estão meus homens? - ele esbravejou

- Todos mortos, acabei com eles.

- Sozinha? - Reina questionou

- Sim!

- Realmente faz muito sentido meu irmão ter se interessado por você, é uma jovem fora do comum.

- Realmente há quem diga isso. - me fiz de desentendida - E o que quer de mim, senhor?

- Eu ia só matá-la, mas vi que é uma joia bem mais rara do que pensei. Então, vou levar você sob custódia! Quem sabe até desposá-la!

- Infelizmente, eu vou ter que recusar a sua oferta, senhor. Prometi a meu irmão defender esta casa.

- Terei que levá-la à força então! - disse se levantando e desembainhando a sua espada - Vai ser interessante!

Os outros dois afastaram minha mãe e cunhada para um canto, apenas para observar a luta. Eu já tinha visto que meu oponente era alto, mas ainda assim me assustei quando ele se pôs de pé. Tirei minha wakizashi da bainha e armei a minha postura de luta.

Ele soltou um grito e avançou para cima de mim, desferindo golpes e mais golpes, bastante fortes. Eu tentava defender, mas cada um daqueles me levava mais ao chão. Era uma briga de força física e isto não era algo que eu tinha.

Percebi que ele gastava muita energia com seus golpes, então era questão de tempo para ele precisar descansar. E foi o que aconteceu! Deu alguns passos para trás, a fim de recuperar o fôlego. Foi nesta hora que enchi meus pulmões e pulei para cima dele, mas dando ataques mais leves, que boa parte eram atrapalhados pela enorme armadura dele. Os que passavam pelas brechas deixavam cortes superficiais em sua pele. Deu para ver que ele fez algumas caretas de incômodo! Eu dei alguns passos para trás, era eu quem precisava me recompor agora.

-  Realmente interessante! - soltou por fim

E a situação seguiu da mesma forma por um bom tempo. Já havia percebido que meus golpes não iam funcionar e sequer derrotá-lo. Eu estava falhando em proteger a nossa casa e nossa família. Precisava de outra estratégia, mas o quê? Se ele estivesse sem armadura… Ah, sim, fazê-lo tirar! Soltei para mexer com o ego dele.

- Nossa luta está interessante, mas muito injusta. Veja o tamanho da sua proteção e eu conto apenas com a minha espada curta.

Eu não sabia se ia dar certo, mas eu devia tentar ao menos. Ele olhou para mim e depois para sua armadura. Direcionou o olhar para os outros dois e ordenou que tirassem as placas de bronze que o protegiam. Deu certo!

Levou um tempo, mas ele despiu a armadura, mostrando as roupas que estava usando por baixo. E prosseguimos com a nossa batalha! Só que desta vez, em alguns momentos, alguns dos meus golpes atingiam meu oponente.

Só que estava muito difícil para mim, pois ele era bem maior e bem mais forte que eu. Não sei se conseguiria defender a nossa casa por muito mais tempo!

Eu temia agora pelas outras três mulheres da casa: minha mãe, minha cunhada e minha sobrinha. Essa luta estava colocando todos nós em risco iminente de seja lá o que for que este homem - que nem faço ideia de quem é - e seus companheiros queriam.

Depois de mais um curto embate, onde defendi mais uma série de ataques dele, tomei o fôlego e me enchi com uma determinação nova, pois não era só para mim agora.

Eu não podia ficar como uma mulher indefesa, esperando por um milagre que viesse para nos resgatar. Eu aprendi a manejar a espada, aprendi combate corpo a corpo, aprendi a me defender e a lutar por mim e por quem não o pode fazer. Só sairia dali raptada ou morta.

Antes de avançar novamente, eu dei um grito, longo e inflado com os sentimentos que me vieram à mente. Investi com vontade, dando golpes fortes e repetidos.

Meu oponente tomou um susto com tudo isso e a cada corte da lâmina no vento e também em seu corpo, ele foi se encolhendo e encolhendo, até que eu o derrubei no chão, arremessando sua arma para longe. Ele ficou estirado no chão, indefeso. Porém, minha mãe e Reina ainda estavam sendo vigiadas pelos outros dois. Ambos iam me tirar dali, mas o seu líder os impediu. Coloquei o pé sobre seu peito, colocando a wakizashi próxima a seu pescoço e resolvi fazer a pergunta que estava me encucando desde o começo:

- Afinal, quem é o senhor?

- A senhorita não me conhece?

- Se conhecesse não estava perguntando.

- Sou Yuan Kuan, imperador do reino de Zeyunao. O grande motivo de toda esta guerra… Ou devo dizer que é por que meu irmão quer subir ao trono e pediu ajuda aqui?

Então as peças se encaixaram na minha cabeça. O governante do império vizinho era um tirano louco e sem escrúpulos. Pelo pouco que lembro, ele subiu ao trono depois de ter assassinado o pai. Também havia um irmão mais novo, que simplesmente fugiu, temendo por sua vida. Será que o Jun era este irmão fugitivo? Não teria como eu saber!

- E por que me quer então? O que tenho a ver com esta guerra?

- Apenas por vingança contra meu irmãozinho.

- Isso é sério?! - disse aproximando mais a lâmina de seu corpo

- Interprete como quiser, Srta Yura.

Como sempre, homens usando mulheres como meros objetos de seus prazeres. Eu perdi logo a paciência e ia acabar com aqui logo, enchendo o jardim de peônias com o sangue dele. Porém, uma mão em meu ombro me impediu. Uma voz me chamou e quando olhei para trás, eu vi Jun, Kenji e um pequeno pelotão acompanhado deles.

A ação deles foi tão rápida e eu estava tão absorta na minha raiva que nem notei. Eles imobilizaram e desarmaram os outros dois, libertando assim as outras três. Enquanto outros dois pegavam o líder e o aprisionavam também.

Então, Jun me perguntou:

- Se machucou?

- Apenas alguns cortes superficiais, mas estou bem.

- É bom te ver de novo! - ele sorriu

- É bom te ver também!

Meu irmão veio falar comigo e me abraçou, agradecendo por ter cuidado de tudo.  E ele finalmente foi conhecer a Ichihime, sua filha.

- Encontramos alguns corpos espalhados pela casa, foi você, irmã? - indagou Kenji

- Sim, fui eu! Sozinha.

- Você continua me impressionando.

- Eu quase que não sobrevivo a esta luta. - comentei tentando ser engraçada - Alias, precisamos conversar sobre uma coisa.

- Eu sei, também preciso falar sobre algo importante com você. Mas, deixemos para depois que todos descansarmos. Nos encontramos assim que amanhecer, bem aqui.

Os soldados trataram de retirar com corpos, os prisioneiros ficaram presos na despensa da casa, até a chegada do imperador Shinobu para resolver o que fazer. Voltei a dormir em meu quarto, mas demorei muito a pegar no sono, ainda mais por causa da batalha intensa de antes, que manteve meu sangue quente por um tempo.


***


Acordei com os primeiros raios de sol me incomodando. Se não estivesse presente, não acreditaria que a noite anterior realmente aconteceu.

Levantei e logo minha criada pessoal chegou e me apressou um pouco para que fosse logo comer, pois todos estavam me esperando. Ela me ajudou a me arrumar, enquanto contava como todos ficaram nervosos na noite anterior, até que meu irmão apareceu e perguntou de todos estavam bem, dizendo que podiam sair que já estava seguro.

Para ela, foi o meu irmão que resolveu a situação e não tinha sido eu, já que nenhum dos criados da casa viu. Como sempre, um homem levando o crédito, mas era o Kenji pelo menos.

Terminei de me vestir e fui de encontro aos outros, que já estavam inclusive comendo.

- Bom dia, irmã! - meu irmão me cumprimentou

Sentei-me em minha posição de sempre, ao lado da minha mãe, que ainda me olhava com uma cara estranha para mim, talvez porque acordei bastante tarde.

- Yura, - Reina começou - eu nem sei como te agradecer por ontem à noite.

- Não precisa! - sorri, sem graça

- Eu ainda estou impressionado em como derrotou todos aqueles caras sozinha, Yura. - meu irmão completou

- Agora entendo a insistência do meu filho para que você aprendesse as artes da família. - minha mãe completou - Senão, não teria ninguém para defender esta casa ontem.

Sorri sem graça para os comentários. Era uma das poucas vezes que era elogiada dentro daquela sala e especialmente pela minha mãe.

Jun mantinha-se apenas observando a cena, nossos olhares se cruzaram em dado momento e eu senti um calafrio percorrer a minha espinha por causa da nossa “conversa”, prometida desde a noite anterior.

Logo após este curto diálogo, a refeição se seguiu num silêncio em que dava para ouvir uma folha de papel cair no chão. Todos se dispersaram para seus próprios afazeres, enquanto ficamos só eu e Jun no recinto, já terminamos de comer por último.

- Yura, será que nós podemos conversar no jardim? - ele olhou para mim

- Claro! - respondi, me levantando

Andamos um pouco e já estávamos no jardim de peônias, que ainda carregava as marcas da luta intensa da noite anterior. Era a mesma época em que nos conhecemos no ano anterior, com as flores em seu auge, bonitas e coloridas, ornamentando o local.

- Você ainda está com a pulseira. - comentou se referindo ao presente que ele me deu

- Sim! Uso sempre, ela é muito bonita. - sorri - E bom, nós fizemos uma promessa.

- E eu retornei para cumprí-la. - olhou sério para mim

- Mas, e a guerra?

- Você acabou com ela.

- Eu? Como?

- Ontem a noite, ajudando a derrotar o grande imperador de Zeyunao.

Então, já que ele levantou este assunto, resolvi perguntar:

- Ele me disse algumas coisas ontem… Você é mesmo irmão dele? E está na linha de sucessão?

- Sim e sim! Na verdade, meu nome completo é Jun Kuan Akaibara. Assim que voltar para casa devo assumir o trono.

- E aquela história de província do norte?

- Eu sou filho do segundo casamento do imperador anterior. Minha mãe é das terras do norte, passei boa parte da minha vida lá e era o lugar onde me escondia de meu irmão.

- Imagino que tipo de acordo tenha feito com o imperador de Ogushahara para entrar nesta guerra.

- O povo quer que eu suba ao trono, mas eu precisava derrotá-lo antes. Então, o outro imperador resolveu me ajudar, junto com os melhores soldados dele e o seu irmão. Por isso eu vim para cá! - ele olhou para as flores acima - Sei que parece maluquice, mas é a verdade.

- E o quê vai fazer com o seu irmão ao levá-lo de volta?

- Será executado, por ter matado nosso pai, se o imperador Shinobu concordar. - suspirou - Eu fiquei com medo do que ele pudesse fazer com você. Ele jurou vingança quando perdeu a última batalha e disse que ia atrás da minha prometida.

- Como ele sabia disso? Espiões?

- Sim! Deve ter escutado algumas das conversas sobre você com seu irmão.

- E quando volta para casa? - receosa

- O mais breve possível! - pegou em minhas mãos - E quero saber se você, Yura, quer ir comigo. Como a minha noiva, depois esposa e claro, a imperatriz…

- Eu? - senti um soluço quase me travar - Eu não sirvo para ser imperatriz, eu não tenho metade das habilidades necessárias… - estava repetindo o que minha mãe me enfiou na cabeça desde sempre

- Uma mulher que defende a sua família e a sua casa da forma que fez ontem tem tudo o que é preciso para ser a imperatriz. Derrotou uma dúzia de homens sozinha e ainda batalhou com um imperador, que é um excelente guerreiro, por bastante tempo. Quando eu cheguei, você já o tinha rendido e ia matá-lo se não tivéssemos chegado.

- E ainda mataria os outros dois… - sorri, sentindo as lágrimas em meu rosto

- E mesmo assim, independente de tudo isso, eu amo você, Yura. E só por esse motivo quero você como minha esposa. - secou uma das lágrimas - Agora que a guerra acabou, você aceita?

- Claro que sim! - me joguei nos braços dele

Ele me acolheu seu peito e eu senti as batidas aceleradas do seu coração.

Acho que a minha mãe ficará muito orgulhosa da filha dela que conquistou um imperador, mas não porque seguiu o que ela recomendou, mas sim, porque apenas foi ela mesma.

E por fim, Jun disse:

- Vamos organizar tudo para partirmos em breve. Seu irmão e sua mãe ficarão muito felizes com esta notícia!


***


“Dance como se estivesse lutando 

O tempo humano acabou... mas ainda 

Nada vai começar se você não se mexer, certo? 

Vamos soltar as correntes amarradas e começar a correr

(...)

Superei meus instintos por todos os meios, e desenhei o que eu queria em meus olhos 

"O novo Mundo" 

sonho sob o céu 

Efêmera como uma flor... Linda”


(FOOL THE WORLD - Minori Chihara)

 
 
 
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