terça-feira, 31 de julho de 2018

Algum dia... Na chuva


“Naquele dia frio em que fiquei esperando
apenas por você, debaixo daquela forte chuva,
naquele momento, o medo não me tomou e até pensei que
mesmo que fosse meu ultimo suspiro,
não me importaria.”
(Rainy Day – Ayumi Hamasaki)
***
Era Março. Final do Verão. Época das chuvas. De todas as chuvas que nos dois meses anteriores não vieram.  Eu saia de mais um dia longo no trabalho, especialmente um em que novos estagiários começaram, então precisamos dar o máximo de atenção, ensinando todos os processos e respondendo todas as dúvidas.
Cada funcionário foi encarregado de dois a três estagiários. E bem, eles seriam meus “bebezinhos” pelas próximas duas semanas. Que alegria! Como que alguém me suportou quando eu era estagiária? Todos os anos é a mesma coisa, mais novos jovens inexperientes e com enorme vontade de aprender e um ego maior ainda. Por que essa geração se acha tanto? Alias, ainda sou da geração deles. Eu sou em média seis ou sete anos mais velha do que os que entraram hoje. Acho que foi o peso da vida profissional desgastante que caiu sobre mim e eu virei uma mulher desacreditada em qualquer coisa, sem sonhos, só levando um dia de cada vez e contando o salário no final do mês.
Até que os meus pupilos dessa vez são bem inteligentes e entenderam de primeira tudo aquilo que passei a eles. Isso já facilita bastante o meu trabalho! Ninguém merece ficar repetindo três vezes a mesma coisa só porque não entenderam. Não ligo de repetir uma segunda, mas uma terceira... Ai não!
Desci do prédio, já com guarda-chuva na mão porque lá de dentro eu já via a chuva torrencial e de final de tarde que caia. Podia chover um pouco mais tarde né? Mas, tudo bem, melhor chuva do que aquele calor infernal que a gente sai do ar condicionado já pedindo para voltar. Parei embaixo da marquise para abrir o guarda-chuva e foi quando ele apareceu, naquele momento ele era só um dos estagiários que começara naquele dia. Ele indagou:
- Com licença. Será que eu posso dividir com você? Eu esqueci o meu em casa.
- Claro. A questão é para onde você vai.
- Vou para o metrô e acredito que você também, senão teria descido no andar do estacionamento.
- De fato! Venha, vamos logo. Tomaremos um banho de qualquer jeito. – sorri, tentando ser simpática
O guarda-chuva era pequeno já para mim, imagine para nós dois. O rapaz era um pouco mais alto do que eu, com o perdão de estar usando um pequeno salto que me favorecia. Nossos corpos estavam um pouco próximos demais, ele segurava a bolsa com a alça que atravessava seu peito, colocando na frente, numa tentativa em vão de não molhá-la também. Não trocamos nenhuma palavra sequer no caminho. E por que faríamos isso se estávamos concentrados em não cair nas poças da rua? Por sorte, o metrô era uns cinco minutos dali num dia seco, com a chuva, demoravam uns sete a oito. Trajeto curto e rápido.
Descemos a escada da estação, fechei  a sombrinha e fomos em direção a roleta. Passamos os bilhetes e entramos. Um trem já despontava na estação, mas não parecia nem ser o meu e nem o dele. Ele disse por fim:
- Obrigado! Eu estaria encharcado se por fosse por seu chapéu.
- Sem problemas. – sorri, sem graça
- Eu sou Pedro. E você?
Pedro era um garoto bonito. Trajava uma camisa polo, calça jeans e um sapatênis. Mal tinha barba e seu cabelo estava preso num coque samurai. Ironicamente, com essa cara de bebê que ele tem, acabei me sentindo até atraída por ele.
- Luana. É um prazer!
- Você trabalha com os estagiários não? Eu te vi mais cedo na empresa.
- Sim. Faço parte da equipe de treinamento de vocês.
- Entendi. Se eu tiver uma dúvida, será que posso perguntar a você? É que a minha instrutora não foi muito com a minha cara.
- Claro! Se bem que também não me acho uma instrutora muito paciente.
- Mas você não pegou ranço de mim. – e riu, eu ri junto
- Então...  Até amanhã.
- Até!
Seguimos por caminhos diferentes, cada um para a sua casa. Enfrentei o metrô abarrotado, mais lotado que uma lata de sardinha e cheguei morta e faminta em casa.
Abri a porta, tirei meus sapatos, deixei a bolsa sob a mesa. Fui à cozinha e na geladeira peguei uma das comidas que deixo separadas para eu comer quando chego. Cinco minutos no micro-ondas – mais conhecido como a melhor invenção de todas – e voilá.
Coloquei uma das minhas séries favoritas para ver enquanto saboreava a refeição. Depois de um episódio, tomei um banho delicioso e assisti mais um dois episódios antes de pensar em ir dormir.
***
Fiz o mesmo trajeto de sempre para chegar ao trabalho. As chuvas da tarde e noite anterior deixaram as ruas ainda molhadas. Um sol bem forte já brilhava no céu, o que era o sinal de outro dia de calor e de tempestade no final, pouco antes de ir para casa.
Encontrei com Pedro no elevador, que me cumprimentou. Descemos no mesmo andar e adentramos o setor juntos, o gerou uma série de olhares dos funcionários e estagiários. Como se nunca na vida as pessoas chegassem juntas num lugar. O que eles estão pensando? Puta que pariu!
Eis que a vida resolveu me pregar uma outra peça. Marília, uma das funcionárias, ou melhor, ex-funcionária, veio chorando e se despedindo de todos. É uma pena quando alguém acaba sendo desligado assim de repente. Ela era parte da equipe que recepciona os estagiários. E com a saída dela, cada um dos restantes acabou de ganhar de presente mais um recém-saído-da-adolescência para ensinar. Puta que me pariu de novo! Obrigada, mundo corporativo, por foder com a minha vida... De novo!
E imediatamente, disseram quem era de quem. Meu novo pupilo? Pedro! Não sei se isso é bom ou ruim. Vamos descobrir!
Como todos recebem o mesmo treinamento só que com instrutores diferentes, prosseguimos com a sequência do dia anterior.  Pedro também era bem astuto como os seus colegas de equipe. Ele aprende até mais rápido, ouso dizer. Muitas coisas eu nem sequer precisei explicar, por lógica o garoto já ia fazendo. Engraçado, eu era exatamente assim, tentava mais ser autodidata do que ficar dependendo de algum superior para me ensinar a fazer o serviço. Colocava a mão na massa e a cara a tapa, se errar, tenta de novo. Acho que até hoje é assim!
***
Logo as semanas de treinamento passaram e com a conclusão desta etapa, todo mundo quis ir almoçar junto.  Prefiro aproveitar meu horário de almoço sozinha, mas é apenas um dia, então tudo bem.
Escolhemos um restaurante próximo e em conta, para dividir a conta entre quase umas quarenta pessoas. Percebi a grande separação da mesa: Funcionários de um lado, estagiários do outro. Os jovens só conversavam entre si e os adultos idem. Era meio estranho ver essa cena, apesar de tudo o que eu falo, ainda quero que tenhamos uma relação legal, que fique até um pouco além da hierarquia estabelecida dentro do escritório. Mas, como quebrar esse gelo? Eu sou péssima em puxar assunto com gente da minha idade.
Eis que alguém tenta fazer isso. Ele mesmo: Pedro. O pior de tudo? Ele puxou assunto comigo. Primeiro contou ao pessoal sobre o dia que dividimos o guarda-chuva até a estação. O pessoal acabou rindo dele. Eles começaram a contar sobre o curso que faziam, sobre a própria faculdade, como eram as aulas. Diversos jovens diferentes, com diversos sonhos diferentes, mas todos ali, em busca de algo que nem eles mesmos ainda tinham certeza. Por que colocam essa coisa besta na nossa cabeça de que devemos decidir o que fazer pelo resto da vida aos vinte anos?
O clima no almoço melhorou bastante e voltamos bastante animados para o segundo turno de trabalho.
Mais tarde, na hora de ir embora, mais uma chuva de final de tarde resolveu dar o ar de sua graça. E Pedro apareceu novamente pedindo socorro, pois esquecera novamente o chapéu.
- Como é possível que você não tenha um guarda-chuva? Algum parente seu não fala: Olha, Pedro, vai chover, leva uma sombrinha. – reclamei no começo de nossa caminhada
- Falam. Eu que sou esquecido.
- Não pode ser. Pode ter um dia que eu não esteja aqui para te acudir.
- Acho difícil. – ele riu – Você tem cara de ser tão certinha e que não falta o trabalho.
Esse garoto perder a noção do perigo é? O quanto ele me conhece para saber o que eu sou ou deixo de ser. Eu hein!
- Você não me conhece para falar isso. – bufei
- Talvez não. Mas, de uma coisa sei: você é uma tia legal. - ironizou
- Que? – oficialmente sou a tiazona no meio dos estagiários – Tia? Tá de sacanagem?
O momento permitia um papo mais informal, mesmo que eu estivesse mordendo a língua para não mandá-lo a merda e o caralho a quatro por me chamar de tia. Nem sobrinho eu tenho ainda. Ser chamada de tia por um cara que é só uns cinco, seis anos mais novo é o fim da picada.
- Quantos anos têm? Sei que isso não é pergunta que se faça, mas não consigo mesmo estimar sua idade.
- 26. Apesar dessa cara.
- Só? Achei que tivesse mais. – tossiu para disfarçar - Quer dizer, parece até que tem mais.
- Definitivamente não foi um elogio. Mas, e você, quantos anos?
- 20. Faço 21 daqui uns meses.
Na flor da idade. Que saudade dos meus 20, 21. Olha a idosa falando né, Luana?
Logo nosso trajeto terminou e seguimos cada um para um lado, direto para casa.
***
Os meses foram passando, as estações também. A época das chuvas se foi, veio a dos ventos e depois a das flores. Porém, uma coisa não mudara desde então: tinha companhia para ir a até a estação de metrô. Pedro era meu subordinado na empresa, mas um colega de caminho de volta. Por aqueles menos de dez minutos de caminhada já conversávamos sobre várias coisas.
Ele, mesmo mais novo e brincalhão, era bem maduro para sua idade e acabávamos tendo uns papos até mais complexos e cabeça. Discutíamos quase tudo em poucos minutos. Engraçado que a gente se entendia muito bem, até enxergava minha versão mais nova nele. E isso acaba me fazendo ficar mais atraída por ele. Só que isso era perigo. Era um relacionamento no trabalho e eu sei que isso não pega muito bem, especialmente com um estagiário. Eu tinha medo de investir por causa disso.
Já ele jogava umas cantadas para mim quase na cara de pau. Ele soltava umas graças, ficava me olhando, sorrindo. Se eu fosse da idade dele, eu estaria mais derretida que manteiga. Sempre me chamava para sair depois do expediente, contudo sempre recusava por um medo besta, ele respeitava meu espaço quando eu dizia que não.
Eu não comentava sobre isso com ninguém. Imagina o que meus colegas falariam.
Até que um dia, com essa persistência dele, aceitei. E sim, fomos tomar um café ali perto. Numa sexta, eu não tinha compromisso e nem ele tinha aula. Tínhamos todo o tempo do mundo para conversar. E o garoto foi direto ao assunto:
- Sabe por que eu insisti tanto para que viéssemos aqui?
- Por quê?
- Porque eu gosto de você, Luana. Desde o dia em que você estava parada, na porta do prédio, abrindo seu guarda-chuva. Antes era só atração, mas agora...
- Idem, comigo. – sorri, boba – Mas, você sabe que não daria certo né?
- E por que não? Por causa da hierarquia?
- Não pega bem eu ficar com um estagiário. Já vi acontecer outras vezes e não acabou bem.
- Eu disse que você era certinha.
- Eu não sou. Eu só tenho medo.
- Nem se a gente tentar? – pegou em minha mão – Só uma vez. Longe daqui... – olhou para mim – Eu quero e eu acho que você também.
- Assim você me deixa completamente sem defesa, garoto. – resmunguei e ele riu
Não tinha mais volta. A vontade já era enorme. O desejo já o era também. Nem que fosse só uma noite, uma tarde, uns cinco minutos, uma caminhada até a estação, tínhamos que ficar ao menos uma vez.
- Vamos para a minha casa então. – concordei
- Agora? Posso só terminar o café?
- Pode. – e sorri
Fizemos nosso caminho habitual do final da tarde. Dessa vez, pegamos o mesmo caminho, o caminho da minha casa. Eu já não estava pensando direito, meu coração pulava de ansiedade. Sabe o pior? Acho que eu sou certinha mesmo. Eu tô me sentindo esquisita de estar com um garoto mais novo, que tem idade para ser meu irmão caçula.
Tanto eu quanto ele nos deixamos levar. Pelo certo ou pelo errado, não sabemos. Era o que a gente queria. Acabou que ele dormiu na minha cama comigo. Tomamos café da manhã juntos, nos despedimos e ele voltou para sua casa.
Algumas semanas se passaram e era o amigo oculto de final de ano, ou melhor, inimigo oculto. Quem eu tirei? O Pedro. O que dei de presente a ele? Exatamente, um guarda-chuva. Ninguém entendeu nada, mas nossa troca de olhares e risada explicou tudo, revivendo a história da chuva de fim de tarde.
Mesmo depois daquele noite, o clima não ficou esquisito entre nós. Como adultos, entendemos que aquilo foi só uma vez e não teria mais. Talvez num futuro a gente pudesse tentar para valer.
O ano virou e mais uns meses correram e com isso era o final do período do estágio dos jovens. Houve uma festa de despedida. E sim, o Pedro veio aqui em casa mais uma vez. Por quê? Nem eu e nem ele sabemos. Talvez uma noite de despedida.  Um até logo, não sei.
Vai ser triste não poder mais trabalhar e nem dividir algumas discussões com ele. Sentirei saudades desse garoto.
***
Os anos correram - cinco para ser exata -, nem estou mais naquela mesma empresa. Agora eu sou a dona da minha própria. Sempre gostei de moda e finalmente acordei para o meu sonho de trabalhar com isso. Agora tudo tem o ar mais leve. Eu acordo animada para trabalhar, para ser a líder da minha equipe e não a chefe que apenas dá ordens, mas sim aquela que está lá, trabalhando e junto aos funcionários com a mão na massa. Estamos ainda no começo, mas estou certa de que vamos crescer.
É Março novamente. Com as suas chuvas torrenciais. Alias, elas sempre me lembram alguém, um alguém que viva sem guarda-chuva. Ainda acredito que ele esqueceu de propósito para se aproximar de mim. Sempre me pego pensando nele quando olho a chuva cair através da janela.
Preparo-me para encarrar mais uma tempestade a caminho de ir para casa. Pego meu guarda-chuva na bolsa, ajeito-o e abro. Eis que escuto uma voz masculina dizer, se aproximando de mim:
- Com licença. Será que eu posso dividir com você? Eu esqueci o meu em casa.
Olhei para ver quem era e encarei aquele rosto um pouco mais velho do que me lembrava, com o cabelo um pouco mais curto, mas com mais barba.  Olhei sua mão direita e vi que ele segurava o presente que lhe dera no inimigo oculto.
- Claro. – sorri – É bom te ver de novo, Pedro.
- É bom te ver de novo, Luana.
***
“Você chega calmamente de algum lugar
e sempre me diz
da felicidade que está perto de mim.

Apoiar e ser apoiada,
chego perto de você, pouco a pouco.
Proteger e ser protegida,
eu fico convencida que
mesmo tentando me afastar do amor,
fui salva por ele.”
(RAINBOW – Ayumi Hamasaki)

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